O impacto do “7 a 1” no mito da brasilidade

  1. O “7 a 1” enquanto fenômeno social

      1.1. A descrição do “7 a 1”

A segunda Copa do Mundo sediada no Brasil, ocorreu nos meses de junho e julho de 2014, e deu-se em meio a uma grande expectativa, que era a de que a conquista do título da Copa de 2014 pudesse apagar a frustração causada por um outro vexame histórico: o Maracanazo, que consistiu na derrota do Brasil para o Uruguai numa partida decisiva da Copa de 1950, torneio que também ocorreu “em casa”. Todavia, a vitória sobre a equipe alemã também renderia ao Brasil a esperada vaga para o final do campeonato e possivelmente a conquista do hexacampeonato; os dois eventos não vieram a ocorrer, e nos dias que sucederam àquele infeliz episódio a imprensa se concentrou na procura por explicações para a derradeira derrota e, com isto, elaborar narrativas acerca do revés.

Na marcha por narrar e buscar explicações da aniquilação para a Alemanha, a imprensa esportiva fez uso oportuno da memória de Copas, bem como seleções do passado, pois, de certo modo, para se enfatizar à exaustão um acontecimento e reproduzir toda decepção causada ante às multidões, é a relação da mídia com a memória nacional quem se destaca em episódios desta categoria. Contudo, somados a este fato encontram-se adjacentes algumas ideias sobre a questão da relação do Brasil com o futebol, especificamente sobre a narrativa de que o brasileiro possui um estilo peculiar de praticar este esporte. Souto (2007), afirma que os colunistas esportivos atuam como guardiões de tradições, e assim “atuando como construtores da memória de uma determinada época, num processo de permanente reelaboração”. E, além disso:

“É importante registrar que a trajetória da seleção brasileira ao longo dos anos, bem como sua representação, é, em grande medida, forjada pela imprensa. E que esse processo se dá, ora pelo lado do silêncio, ora pelo lado da lembrança de determinados fatos e acontecimentos, que vão sendo construídos, em sintonia com uma visão de mundo, num processo não-estático e dialético. Tanto o esquecimento quanto a lembrança são construções que ajudam a referendar o poder simbólico e real da imprensa na sociedade e, neste caso, dos colunistas em particular” (SOUTO, 2007, p. 304).

E é justamente essa busca por narrativas que registrem a presença da memória, principalmente naquelas matérias publicadas após a derrota de “7 a 1” do Brasil para Alemanha na Copa de 2014, que foi feita a partir daquele momento e que vigora negativamente ainda hoje na memória nacional. Se por um lado o placar se tornou algo inteiramente inesquecível para a nação brasileira, ao se fazer uma breve análise do time, levando em conta a sua construção, as suas táticas de jogo e sua incapacidade de reação frente às investidas do adversário, o desempenho da equipe especialmente durante os seis minutos em que ocorreram os quatro gols, período intitulado “apagão” pelo então técnico Luiz Felipe Scolari (Felipão), ainda provocam até os dias atuais vários debates acalorados acerca daquele deprimente episódio.

Tamanho desatino jamais poderia ser consequência direta de apenas um fator. O Brasil estava em ampla desvantagem, primeiramente pela falta do craque Neymar, que havia se machucado numa partida anterior, e, em segundo lugar, pela ausência do até então capitão do time Thiago Silva, que fora suspenso. Apesar de ter conseguido treinar com a formação escolhida em substituição à ausência dos dois integrantes, o grupo todo mostrou-se ainda psicologicamente abalado ao longo de todo o torneio, e, até certo ponto inexperiente, sendo que foram 17 estreantes cotados para aquele período de Copas. E, por último, era notável que eles não tinham também um grupo de jogadores tão bom quanto o grupo adversário.

  • Seleção travada

Neymar, atingido pelo colombiano Zúñiga nas quartas de final, se encontrava ausente nas semifinais. Até então, o Brasil tinha boa saída pelos lados do campo. Análises específicas revelam que em quatro dos cinco jogos disputados antes da semifinal, o maior número de passes de um brasileiro para seu companheiro, havia se dado entre um lateral e um meia ou atacante de beirada. No “7×1”, entretanto, a principal associação ocorreu entre dois zagueiros. Se, todavia, a troca de bola entre zagueiros surtiu baixíssimo efeito criativo, a Alemanha teve sua maior combinação entre dois jogadores de construção, que se deu entre dois meio-campistas.

  • Intensidade

Entender que o futebol brasileiro era pouco intenso e procurar soluções foi uma das boas consequências daquele desastre. Equipes mais bem preparadas executavam mais ações em menos tempo, com maior velocidade dos integrantes. Aumentavam o ritmo, a rotação do jogo. Esse foi o único jogo da Alemanha na Copa daquele ano em que ela teve menos posse de bola do que o adversário: 48% contra 52% do Brasil. Ao fazer “5 a 0” em 29 minutos, a equipe se preservou durante todo o segundo tempo.

     1.2. A forma como a sociedade brasileira descreveu e “viveu” o “7 a 1”

Ninguém foi capaz de explicar de imediato o “apagão” que aconteceu naquela terça-feira no jogo da Seleção, que revelou-se um momento complicadíssimo para o futebol brasileiro. A Alemanha era um adversário forte, difícil,  no entanto ninguém poderia presumir um resultado tão avassalador por parte dos alemães. Acabou-se ali o sonho de conquistar o sexto título mundial “em casa”, ali, a relação do brasileiro com o futebol encontrou-se desnorteada e amplamente abalada, não pela derrota em si, não pela não conquista do hexa, mas sim pela rapidez e pelo modo como os eventos daquela tarde aconteceram. Essa ideia está presente numa das colunas esportivas de O Globo, assinada por Fernando Calazans. Segundo Calazans, o Brasil assistia no Mundial de 2014 à maior tragédia da história da seleção brasileira:

“O futebol brasileiro pentacampeão do mundo, os donos dos cinco títulos – jogadores, técnicos, torcedores de todas as épocas – não mereciam isso. Não mereciam saber disso, muito menos ver isso, presenciar isso, assistir a isso. Não mereciam passar por essa vergonha, essa tragédia – e, vou dizendo logo, uma tragédia maior, muito maior, do que a vivida no Maracanã, na Copa de 1950, quando perdemos o título para o Uruguai, por 2 a 1.”

Lágrimas de quem viveu a primeira Copa do Mundo. Desespero de quem já acompanhou tantas outras. O choro, tanto dos atletas quanto dos torcedores, expressou um sentimento de fraqueza, de ter atadas as mãos, não só de todo um estádio, mas também de toda uma nação verde e amarela que sempre teve uma relação muito próxima com este esporte tão característico de nosso povo. Tristeza, frustração, decepção; sentimentos expressados em milhões de olhares e rostos. “Eu só queria poder dar uma alegria ao meu povo, à minha gente que sofre tanto já com inúmeras coisas. Infelizmente, não conseguimos”, lamentou David Luiz, então zagueiro da Seleção naquela ocasião. Ele e o ex-goleiro Júlio César seguraram a camisa 10 no momento em que o hino nacional foi executado. E o craque Neymar, que acompanhava tudo a quilômetros de distância do Mineirão, sofreu mais que a dor de um tornozelo fraturado. 

Na capa da edição de 9 de julho, um dia após a partida, O Globo qualificou o episódio em sua manchete como sendo uma “vergonha, vexame, humilhação”, exercendo o papel de porta voz de tantos brasileiros que se sentiram mudos e estáticos em frente aquele drástico espetáculo. Já no subtítulo desta manchete, a publicação caracterizou este evento da seguinte maneira: “seleção sofre em casa a maior derrota de sua história”. Ainda nesta mesma publicação, já na sua chamada de capa, o jornal faz ainda as seguintes considerações sobre o sucedido: “A seleção brasileira viveu ontem o pior vexame de seus cem anos de história. A derrota para a Alemanha por ‘7 a 1’, no Mineirão, foi a mais humilhante desde 21 de julho de 1914, quando jogou pela primeira vez”. E, por fim, na capa do caderno especial exclusivo da Copa de 2014, O Globo mantém o mesmo tom. De forma amplamente irônica, os redatores afirmaram que a equipe brasileira “fez história”, pois sofreu: “A pior derrota em 100 anos; O mais duro revés de um anfitrião de Mundial; A maior goleada em uma semifinal; O fracasso mais contundente de uma campeã”. Com declarações como esta, o jornal cria um caminho narrativo no qual se propõe atribuir um novo significado à derrota de 1950, como fica evidente no texto, carregado de um tom emocional, sobre o jogo de 2014:

“O barulho do silêncio, que ecoou no Maracanã depois da derrota de 1950, soava inexplicável para quem não testemunhou aquela jornada, até que a explosão de gols da Alemanha trouxe um vazio apaziguador no Mineirão. Depois de quase sete décadas condenadas ao limbo, as almas dos vice-campeões se libertaram. Ao longo dos 90 minutos em que as ilusões do hexa se espatifaram contra o muro da realidade, a tragédia de 1950 se transformou definitivamente numa derrota honrosa” (O Globo, 2014).

Já a edição da Folha de São Paulo de 9 de julho tem narrativas que seguem na mesma direção. A manchete de capa acabou por definir o evento da seguinte forma: “Seleção sofre a pior derrota da história”. E ainda: “Pela segunda vez, o Brasil perdeu a chance de tornar-se campeão mundial de futebol em seu país. Se em 1950 o ‘2 a 1’ para o Uruguai teve contornos trágicos, a eliminação de 2014 foi marcada pela humilhação. A seleção conheceu a maior derrota de sua trajetória centenária e o pior revés de um anfitrião de Mundiais”.

A partir destas leituras fica explícito que as duas publicações desejam localizar a goleada de “7 a 1” da Alemanha sobre o Brasil como sendo a maior derrota da seleção brasileira em sua história. E para que isso seja possível, os jornalistas fazem uso da memória, e prova disto é que mencionam a marca de 100 anos de história da seleção brasileira, alcançada no dia 21 de julho, afim de  apontar este revés como sendo o principal existente na trajetória do time brasileiro.

Por fim, é importante salientar que, ao tentar localizar este episódio na história da seleção, a imprensa esportiva se vale de várias evidências sobre a equipe, como por exemplo, a de que este foi o pior revés de um anfitrião de Copa, que foi a maior goleada já vista numa semifinal de Mundial e que esta foi a derrotada mais contundente de uma campeã que já conquistou um título mundial. Tais manchetes, apesar de exacerbarem em certos momentos, foram capazes de descreveram o sentimento de angústia experimentado toda uma nação, que se sentiu não menos que esmagada e aniquilada por sofrer uma derrota em campo como nunca antes na história, jogando “em casa”, contrariando por completo a ideia e a compreensão que se tinha até então acerca da nossa relação com o futebol.


  1. A tese de Jessé Souza

      2.1. Características do mito

O autor em sua obra “Ralé Brasileira”, refere-se ao papel de Gilberto Freyre enquanto um dos prinecipais ideólogos da brasilidade e do mito da identidade nacional, deste modo, enfatiza que a concepção de “invenção do Brasil” trabalhada por Freyre “é o que poderíamos chamar de uma ‘inversão especular’”, que em outras palavras, significaria que ele “inverte o problema da identidade nacional ao inverter os termos que o compunham”, e faz uma ligação com os “elementos constitutivos” idealizados por Sérgio Buarque de Holanda, que desde a sua publicação, em 1936, se tornou, segundo ele, uma “leitura dominante – e equivocada – do Brasil”, tanto para intelectuais de esquerda e de direita, quanto para o senso comum. Souza considera que são as concepções dos intelectuais “que explicam por que o mundo material e econômico visível e palpável se construiu dessa forma e não de outra forma qualquer”, e conclui ainda que são também elas que “explicam por que temos ‘essa vida’ social e política, e não qualquer outra possível”. 

Ainda de acordo com Souza, “o mito nacional é um conto de fadas para explicar às pessoas de onde nós viemos, quem nós somos e para onde vamos”, de acordo com ele, este fenômeno denomina-se “personalismo” que classifica-se como sendo “uma das três mentiras contadas pela elite sobre quem o brasileiro é”. Do personalismo, partem as ideias como a de que o brasileiro é corrupto culturalmente, ou seja, adaptado pela emoção, pelo contexto da ocasião.  Segundo o pesquisador, essas ideias influenciam na construção da nossa autoimagem, e nossa personalidade individual “é em parte moldada pelo nosso pertencimento nacional”. Acerca do personalismo, cita ainda:

“[…] personalismo é uma forma de viver em sociedade que enfatiza os vínculos pessoais, como amizade ou ódio pessoal, em desfavor de inclinações impessoais, de quem vê o outro com certa distância emocional, e que, precisamente por conta disso, pode cooperar com o outro em atividades reguladas pela disciplina e pela razão, e não através de emoções e sentimentos ( BUARQUE,1936).”

A outra mentira contada pela elite econômica ao longo do século XX, segundo Jessé Souza, refere-se ao conceito de patrimonialismo. “Esse conceito diz que o poder, e consequentemente a corrupção e a elite má, estão no Estado. Se você tem o poder, terá a parte boa e, portanto, os privilégios. No entanto, o poder em toda sociedade capitalista está no mercado. Logo, o conceito de patrimonialismo é a cortina de fumaça usada pelos grandes proprietários do mercado que nos assaltam”. Segundo Jessé, a mentira de que a corrupção é política está exposta no Brasil, mas que quem extorque a população são as grandes elites detentoras dos grandes negócios e do capital, que sonegam impostos e superfaturam preços, e que os políticos levam apenas uma pequeníssima “fatia” de todo este “bolo”, pois, segundo ele são apenas “meros lacaios, office boys do mercado”:

“O conceito de patrimonialismo e de ‘estamento’ permite ‘retirar’ das nossas costas, pessoas comuns de classe média, qualquer responsabilidade pelas misérias e iniquidades de nossa vida política. Um indivíduo incapaz de autocrítica não aprende a se conhecer como ser humano e nem aprende a conhecer suas necessidades, capacidades e limites” (SOUZA, 2009, p. 62).

E, ainda:

“O conceito de patrimonialismo aponta que o poder, e consequentemente a corrupção e a elite má, estão no Estado. No entanto, o poder em toda sociedade capitalista está no mercado” (Jessé Souza em entrevista à Fiocruz).

O autor também critica um outro conceito, o populismo, e o classifica como sendo a terceira e última mentira contada pelos intelectuais brasileiros. “Segundo a noção de populismo, os pobres que vêm do campo para cidade, que não foram à universidade e que não leem os grandes autores por não ter instrução são facilmente manipuláveis. Os líderes são, dessa forma, vistos como manipuladores”, explica Jessé, destacando que o conceito tem dois efeitos: limita o alcance da noção de soberania popular e estigmatiza os líderes. “A partir das noções de populismo e de patrimonialismo, chegamos a tudo o que os jornais dizem sobre a política. Claro que em doses homeopáticas, diárias, como pílulas envenenadas”, distorcendo a imagem que se tem do Brasil.

     2.2. A importância dos intelectuais na manutenção do mito

As ideias atuam na realidade porque são elas que fornecem as interpretações que permitem explicar porquê somos dessa forma e não de qualquer outra, bem como são as ideias que estabelecem perspectivas e horizontes de ação e orientam e legitimam práticas ou medidas políticas. Essas ideias no mundo moderno são formuladas pretensamente de forma “cientifica”, pois no mundo moderno são os cientistas as pessoas autorizadas a falar de fenômenos não só naturais, como também sociais. Dessa forma, os intelectuais agem na vida das pessoas, por mais que estas nunca tenham lido aqueles intelectuais.

Não à toa, a forma como o brasileiro predominantemente se percebe ainda hoje, segundo Jessé Souza, foi concebida e idealizada por Gilberto Freyre. A concepção de brasilidade formulada por Freyre atende às necessidades do “Estado Novo” de fornecer uma ideologia nacional para o povo brasileiro. Ou seja, era uma narrativa capaz de forjar união patriótica e solidariedade interna atentando para as positividades da nação. Souza argumenta ainda que  as concepções dos intelectuais podem não ter efeito diretamente sobre a sociedade, pois, segundo ele, em determinadas épocas era grande o número de pessoas iletradas, que não tinham acesso a estes documentos, pois não sabiam ler:

“Não é desse modo que as ‘ideias’ e os ‘valores’ se transformam em regra para a conduta prática das pessoas comuns. Primeiro, em qualquer contexto social, nem todas as pessoas possuem os pressupostos para compreender ideias complexas, depois, especialmente antes da época moderna, poucos sequer sabiam ler” (SOUZA, 2009, p. 111).

Em seguida, explica como se dava a influência de tais ideias sobre o povo em geral, e conclui:

“Nesse caso, como em todos os outros que explicam por que ideias de profetas ou intelectuais passaram a influenciar a vida prática de pessoas comuns, essas ‘ideias’ precisam estar articuladas a ‘interesses’, matérias ou ideais das pessoas comuns que não são profetas ou grandes intelectuais” (SOUZA, 2009, p. 111).

Para enfatizar a ideia central da influência dos intelectuais sobre a sociedade, ou sobre uma parcela dela, ele cita “o caso da ‘ideia’ platônica da virtude”, pois, de acordo com Souza “ela só logrou se transformar no vértice da hierarquia moral que comanda a vida prática das pessoas comuns” a partir do instante que ela foi implementada sob a forma da “salvação eterna” pela Igreja Católica. De acordo com o autor, Santo Agostinho foi o responsável por reinterpretar “a noção de virtude platônica, enquanto controle dos desejos corporais pela mente ou alma”, como sendo o método para o “caminho da salvação” que todo cristão deveria seguir afim de alcançar a vida eterna. Foi desta forma que a descrição platônica de “boa vida” foi transformada em uma obrigatoriedade para todo e qualquer cristão que almejasse ser “salvo”, e é deste modo que o “‘interesse’ ideal na ‘salvação da alma”’, acabou por fazer com que a virtude platônica tornasse uma “regra de conduta para todos os cristãos, inclusive para aqueles que jamais leram Platão”.


  1. O “7 a 1” e o abalo da crença no mito da brasilidade 

      3.1. A comparação com a Alemanha

No Brasil de hoje (e se arrasta já por alguns anos), é bastante clara a presença de inúmeras falácias, mitos e tantos outros artifícios de que o povo se vale para persuadir o sentimento frente às indiferenças que sofre e as mazelas das quais é vítima. Desde a cega aposta em personalidades – salvadores da pátria, heróis nacionais​, que compreendem ídolos do mundo da música, personalidades “em alta” e politicos tanto de esquerda quanto de direita, até o relaxamento das regras socias e morais, contrastando com a dificuldade extrema de lidar com elas e se encaixar nas mesmas; e a ideia que sempre permanece acerca do futebol, é a de que nascemos como esporte no sangue e a garra é algo que vem desde o berço, passado de geração em geração, como se o amor pela camisa anulasse completamente a necessidade de se estudar e elaborar as táticas e se preparar para competições e eventos de grande porte. A prova de que isso não é uma verdade, foi a derrota esmagadora nas semifinais do mundial de 2014 e, ao se fazer uma análise um pouco mais aprofundada, fica evidente o declínio que as seleções anteriores foram sofrendo de copa em copa, o despreparo pode ser facilmente notado, provando que a determinação e a organização, pelas quais tanto prezam os germânicos, indicam o quanto ainda estamos atrasados tanto em pensamento quanto em maturidade para tais competições.

A Alemanha, como tantos outros países europeus e de outros continentes deixam explícito a forma organizada e séria com a qual enfrentaram e ainda enfrentam a pandemia, na tomada de providências e na antecipação de medidas para desastres e cataclismas deste tipo. Com a pandemia do Covid-19, o Brasil foi um dos países em que pessoas mais perderam a batalha para o vírus, tanto pelo descaso governamental, quanto pela incredulidade da população, enquanto que na Alemanha, que com respeito às normas e regras, ao distanciamento social e as determinações sanitárias, reduziu bastante o nível dos indicadores da doença, e a preocupação do governo para com o seu povo ficou evidente com a adesão de lotes de vacina fechados em contratos previamente assinados.

Desde as ralés, que segundo Jessé são as camadas abaixo das privilegiadas, ou seja, a maioria que não possui os recursos que a minoria tem acesso, até a classe mais alta, é marcada por escândalos de corrução e tantas outras ações criminosas das quais se tem noticia; o povo brasileiro, que tem a fama de ser cordial e empatico, tem também enaltecida lá fora a ideia da malandragem e da canalhice, bem como a vulgarização do sexo, e da idealização de que aqui tudo é um “etrerno carnaval”, pois são estas impressões de nós que são mantidas lá fora e que são compradas por tantos gringos que vem ao Brasil atraídos por tais rumores de um povo que na verdade sofre diariamente com a corrupção e a pobreza, consequências de governos desumanos.

Não que haja na Alemanha um “paraíso” em plena terra, mas que há ali um povo que preza pela disciplina e pelos valores morais, isso sim. Conhecida por sua longa e farta história, marcada por fatos e mais fatos que juntos moldaram toda sua cultura, a Alemanha se destaca não só como uma potência comercial, mas também como ponto turístico. Passando desde a literatura e  a arte, ancoramos na sua rica filosofia, que é outra peculiaridade alemã: um país super intelectualizado. A lógica, razão e o amor por cerveja e salsichas também fazem da Alemanha uma nação vasta e interessante para quem busca um destino afim de passar as férias. De acordo Com Jessé Souza, os responsáveis pela disseminação destes mitos e ideias acerca do Brasil são os próprios intelectuais e pensadores:

“Afinal, existe uma relação íntima entre pobreza do debate científico e pobreza da capacidade de reflexão pública. As ideias que habitam a cabeça de políticos, homens da mídia, formadores de opinião de todo tipo etc. são, na sua imensa maioria, ideias de ‘intelectuais’ e de pensadores. Foi a ciência que herdou o ‘prestígio’ e a ‘autoridade’ que antes eram privilégio da religião e dos grandes profetas religiosos” (SOUZA, 2009, p. 71).

     3.2. A confirmação da tese da modernidade fracassada no Brasil

Nas páginas iniciais de sua obra “Ralé Brasileira”, o autor faz uma crítica à visão superficial do economicismo da nossa sociedade, que não leva em conta a divisão de classes, desconsiderando os fatores da precondição social no fenômeno da produção do capital.

“Como toda visão superficial e conservadora do mundo, a hegemonia do economicismo serve ao encobrimento dos conflitos sociais mais profundos e fundamentais da sociedade brasileira: a sua nunca percebida e menos ainda discutida ‘divisão de classes’. O economicismo liberal, assim como o marxismo tradicional, percebe a realidade das classes sociais apenas ‘economicamente’, no primeiro caso como produto da ‘renda’ diferencial dos indivíduos e no segundo, como ‘lugar na produção’. Isso equivale, na verdade, a esconder e tornar invisível todos os fatores e precondições sociais, emocionais, morais e culturais que constituem a renda diferencial, confundindo, ao fim e ao cabo, causa e efeito. Esconder os fatores não econômicos da desigualdade é, na verdade, tornar invisível as duas questões que permitem efetivamente ‘compreender’ o fenômeno da desigualdade social: a sua gênese e a sua reprodução no tempo” (Souza, 2009, p. 18)

Complementando este pensamento, o autor afirma em entrevista exclusiva que a elite brasileira dos dias atuais assemelha-se muito às do século passado, ou seja, aquela que desconsidera ou não calcula os fatores envolvidos no processo de produção, bem como o tempo, e as condições enfrentadas no processo, e afirma ainda que a  elite de hoje “quer tudo agora”, quer “o saque agora”: “a água é minha”, “o petróleo é meu”, isto é, faz com que os bens que deveriam servir igualitariamente à todos, acabem sendo retidos em poder de um monopólio elitista.

Em entrevista ao portal da Fiocruz, Jessé Souza afirma que este modelo de Brasil que nos são apresentados surgiu de fato no século passado, com base nas definições da elite intelectual, que foi cooptada a montar uma ideia distorcida do país, de acordo com ele, toda esta imagem distorcida é um “veneno perigoso” contra o próprio brasileiro, e é esta mesma definição que a mídia se vale para distorcer diariamente a nossa própria imagem.

O autor critica ainda o fato deste modelo ser transmitido nas escolas e instituições de ensino nas quais as elites de todas as áreas se formam, uma definição que remete às origens do Brasil, desde seu descobrimento até os dias atuais, criticando a definição de que as mazelas aqui vivenciadas, tal como a corrupção e adjacências, são herdadas desde nossa colonização pelos portugueses como se fosse um “gene maldito”, assim como temos a concepção de que já nascemos com o “futebol no sangue”, como se fosse uma habilidade genética que dispensa preparo e treinamento. O tópico 2 faz menção aos pontos abordados por Souza que provam o fracasso da nossa civilização.


Bibliografia

SOUZA, Jessé. “A construção do mito da brasilidade. In: _____ A ralé brasileira. Quem é e como vive? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009

7×1: um guia para rever a história do futebol e da Seleção no SporTV: Disponível em: <https://globoesporte.globo.com/blogs/blog-do-lozetti/post/2020/05/31/7×1-um-guia-para-rever-a-historia-do-futebol-e-da-selecao-no-sportv.ghtml> Acesso em: 22 de março de 2021

Brasil sofre maior goleada da história e deixa sonho do hexa em casa escapar: Disponível em:<http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2014/07/brasil-sofre-maior-goleada-da-historia-e-deixa-sonho-do-hexa-em-casa-escapar.html>

Do Maracanazo ao Mineiratzen: Um estudo sobre as memórias da imprensa sobre o 7 a 1: Disponível em: <https://comunicacaoeesporte.files.wordpress.com/2017/03/r10-0406-1.pdf> Acesso em:  22 de março de 2021

Brasil sofre o maior vexame de sua história em Copas: Disponível em: <https://epoca.globo.com/vida/copa-do-mundo-2014/noticia/2014/07/bbrasil-sofre-o-maior-vexameb-da-sua-historia-em-copas.html> Acesso em: 22 de março de 2021

Brasil é massacrado pela Alemanha e sofre sua pior derrota na história: Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/esporte/folhanacopa/2014/07/1483039-brasil-e-massacrado-pela-alemanha-e-sofre-sua-pior-derrota-na-historia.shtml>  Acesso em: 22 de março de 2021

Presidente do Ipea fala sobre o livro “A Ralé brasileira: Quem é e Como Vive”: Acesso em: <https://www.youtube.com/watch?v=h89G2sjaafM&ab_channel=TVSenado>  Acesso em: 27 de março de 2021

QUEM SOMOS NÓS? | Que País é Esse? com Jessé Souza: Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=e-api3qALbY&ab_channel=QuemSomosN%C3%B3s%3F> Acesso em: 27 de março de 2021

Jessé Souza lança o livro “A Elite do Atraso”: Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=a-OHSwXcGjY&ab_channel=C%C3%A2maradosDeputados> Acesso em: 27 de março de 2021

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