Inveja

O que pode caracterizar, em termos antropológicos, a inveja? Quais argumentos podem defini-la de um modo amplo e direto deixando exposto suas ramificações no meio social? Por último, o que o invejoso realmente deseja? Bom, analisando esta última sob a alegação de que “a inveja é uma declaração de inferioridade”, ilustre definição de Napoleão Bonaparte, podemos presumir que, no fundo, este não faz mais do que contemplar o bem alheio como algo inalcançável a si, passando a agir de modo passivo, isto é, como se o mesmo não fosse capaz de ir atrás de seus objetivos e buscar alcançar sua própria excelência, ignorando fatos como a ampla competitividade e as desigualdades a serem encaradas. Porém, o invejoso, tomado cegamente pela ambição de cobiçar o alheio, se vê incapaz de compreender outra coisa, senão que os bens são valiosos somente quando estão em mãos de outros, e assim sendo, o desejo de despojar de que o outro não possua o que tem, está na raiz do pecado da inveja. É um pecado profundamente insolidário, que também tortura e maltrata o próprio pecador. Ora, podemos aventurar que o invejoso é mais infeliz do que mau. A inveja, definida como uma ampla tristeza diante do bem alheio, caracteriza-se como sendo um sentimento de não poder suportar que o outro passe bem com seus recursos, ou seja, o indivíduo que o inveja passa a ambicionar seus gozos e bens. Sob esta ótica, a inveja torna-se de certo modo uma obsessão, um desejo homérico de que o outro não desfrute daquilo que tem. A neurose toma tamanha proporção que o invejoso chega a semear a ideia, diante daqueles que queiram ouvi-lo, claro, de que o outro não é merecedor daquilo que tem, e dessa atitude se desprendem a mentira, a traição, a intriga e o oportunismo, deixando explicito a interconexão entre as mazelas humanas onde cada uma se comporta como um elo frágil de uma corrente, ou, de um modo mais popularesco, cada moléstia da sociedade é como se fosse uma peça de dominó prestes a tombar sobre as demais.

Não se pode negar o fato de que a inveja é até certo momento uma prática agradável e fundamentalmente precisa para o indivíduo. No entanto, a maioria das atitudes de ostentação social atual não tem outro objetivo que não o de despertar a inveja do outro e aguçá-la. Aquele que compra um carro de vinte metros  de comprimento com uma loira deslumbrante incluída no pacote, na verdade está procurando ver os outros tremendo de inveja diante dele. Entretanto, isso também demonstra que a inveja é um ato de caráter plenamente social, digo, o invejado precisa do outro. Há uma anedota que já ouvi contarem, não me recordo onde, que é a seguinte: um famosíssimo toureiro espanhol, à meia-noite se levantou da cama e começou a se vestir apressadamente. Então, sua amante acordou e lhe disse da cama: “Não há pressa, aonde você está indo?”, e ele lhe respondeu: “Contar!”. Essa pequena fábula mostra com propriedade como as pessoas dão tanta importância para o fato de que os outros saibam de seus feitos e tenham conhecimento de suas atitudes, somente para se sentir superior ou especial por ter milhares de terceiros aspirando estar em seu lugar. Talvez a forma mais “louvável” de inveja, se é que isso existe, seja aquela articulada contra os indivíduos dotados de felicidade, e assim, de uma vez por todas, consagrando a frase de Voltaire, que diz: “a melhor vingança contra nossos inimigos é ser feliz”, em outros termos, você é feliz e esse é o pior castigo que pode ser dado para quem o odeia, uma vez que ele sofre horrores com seu bem-estar.

A inveja é um apetite descontrolado e muito curioso por se tratar de um desejo que tem uma longa e virtuosa tradição, o que até certo ponto pareceria contraditória à sua qualificação de pecado. A inveja é a virtude democrática por excelência. Por meio dela, as pessoas tendem a manter a igualdade, o que implica na produção de situações para evitar que alguém tenha mais direitos do que os outros. Ao ver um senhor que nasceu para mandar, você diz: “Por que ele está ali e não eu? O que ele tem que eu não tenho?” Logo, a inveja é, de certa maneira, a origem da própria democracia, e serve para vigiar o desempenho correto do sistema social. Onde há inveja democrática, o poderoso não pode fazer o que quiser. Se há quem não pague impostos, começa a reação daqueles que invejam essa situação e passam a exigir que os privilegiados também paguem. Sem a inveja, é muito difícil que a democracia funcione. Há um importante componente de inveja vigilante que mantém a igualdade e o funcionamento democrático. Na tradição cristã, ela é definida como “desagrado, pesar, tristeza, que se concebe como a intenção de usufruir o bem alheio, enquanto este é visto como prejudicial aos nossos interesses e à nossa glória”.

Diante da inveja, tenho duas opções aparentemente viáveis: aproveitar o bem ou não, porque eu só posso conceber a experiência do próprio gozo, ou seja, não sou capaz de gozar com o outro. Então, preciso que isso que o outro tem seja meu para poder gozá-lo em sua amplitude. Na generosidade eu gozo que o outro o tenha, e, portanto, ele é mais do que eu, no entanto, estou nesse gozo. Na inveja, tudo tem de estar em mim para ser gozo. Sou incapaz de gozar-me em outro. O que me intriga entretanto, é a importância que davam à inveja na antiguidade, por exemplo, na vida monástica o resumo está na frase: ‘Fique em sua cela e sua cela lhe ensinará tudo. Não é preciso mover-se, não há que ir de um monastério a outro; se queres ir, estás fugindo. Mas também diziam: ‘Se em um monastério o invejam, mude de lugar, porque não poderás crescer.’ Considerava-se a inveja uma coisa muito séria, porque afetava o indivíduo de diversas formas. A inveja é um pecado que propicia a sensação de que alguém poderia ter tudo o que é bom dos outros. Se você inveja a mulher do outro, deveria no entanto aceitar tudo o que o outro é, que pensa e sente, e, portanto, deixar de lado todas as coisas que está querendo, pensando, sentindo, quer dizer, renunciar a si mesmo e passar a assumir tanto a condição quanto os estados do outro. Seria necessário transformar-se literalmente no outro, coisa que ninguém, muito menos o invejoso, está disposto a fazer. Isto se dá ao fato de que todo mundo quer ter as vantagens do outro, mas a partir de uma concepção própria, que não avalia os fatos da vida real em sua totalidade. Ninguém está disposto a dizer: “Apaguem-me e escrevam o outro, porque o que quero é ser eu com o do outro.” Não obstante, o que inveja estaria no melhor dos mundos se pudesse conseguir uma dissociação do outro: tirar para si tudo de que gosta, sem levar em conta que todos os bens e benefícios têm um custo na vida, em outras palavras, comprar a vaga de garagem e levar de brinde o Maserati.

A inveja do belo está diretamente vinculada ao conceito de beleza que se manipulou ao longo da história. As esculturas e as gravuras pré-históricas exibem figuras femininas volumosas, até mesmo disformes de beleza que refletem o interesse pela fertilidade. Os cânones gregos não toleravam nem a gordura nem os seios volumosos, desse modo era necessário cultivar o corpo para atingir ao máximo a perfeição estética, que consiste basicamente possuir um pescoço fino e esbelto e os ombros proporcionais, além de ter seios pequenos e firmes. Os gregos difundiram pela Europa grande quantidade de produtos de beleza, dentre fórmulas de cosmética e banhos, assim como o culto ao corpo; em resumo, o atual conceito de estética. Atualmente, a eterna necessidade de beleza no universo feminino se uniram à ciência e um novo ritmo de vida em que é impossível separar a atividade diária do que é aspecto pessoal. Ninguém se orgulha de ser invejoso, mas agora foi inventada uma nova definição pós-modernista: “Eu o invejo bem, tenho por você uma inveja positiva, uma inveja branca.” Não creio que isso exista. Uma coisa é admirar alguém e dizer: “Quero ser como ele.” A emulação é algo positivo, mas não é nenhum pouco saudável invejar alguém ou que o invejem constantemente. A verdade é que alguém sofre muitíssimo quando inveja, e ainda mais quando é invejado. O sujeito inveja seus irmãos por ciúme de seus pais porque imagina que lhes dão mais, então, começamos a acreditar que temos o mundo inteiro contra nós, que existe uma conspiração mundial contra a gente. O filósofo francês Denis Diderot dizia que há sempre uma nesga de felicidade nas desgraças dos nossos amigos. O que não quer dizer que você não vai correr para ajudar seu amigo, emprestar-lhe dinheiro, levá-lo ao médico. Mas, às vezes, um mau momento alheio desperte a frase: “Melhor ele do que eu.” Isso nos leva a considerar que existe uma espécie de relação entre os males e os bens que vêm em número determinado. Se eu desejo e não tenho um automóvel de coleção, é porque outro o possui. Chegamos a achar que não há outro carro a se ter a não ser  “aquele”. A mesma coisa acontece com o mal: se acontece com o “outro”, de alguma maneira me livrei “desse” problema. Tudo me leva a concluir que a inveja é o alicerce de todos os males.

Há pessoas que não têm dinheiro para comer bem na semana, mas conservam suas melhores roupas e um grande automóvel nos fundos de sua garagem porque estes são elementos que despertarão a inveja nos demais. Não se procura ter luxos autênticos, apenas estar na vitrine para ser admirado. A inveja é como um xarope amargo: quando alguém o bebe, fica um bom tempo sem poder se livrar do seu sabor. Nunca é causa de felicidade, mas sim de sofrimento. A inveja está relacionada com aquilo a que nós acreditamos que podemos ascender. É mais fácil invejar o vizinho que comprou um carro último modelo do que o cargo de czar de todas as Rússias. No modelo islâmico, a inveja é um elemento que adoece o coração. As pessoas invejam o êxito, o conhecimento, o dinheiro e a beleza, todavia, nunca invejamos coisas essenciais: por exemplo, a saúde ou a fé do outro. A inveja se combate lutando contra o ego, porque, justamente, é a possibilidade que temos de ser artífices do nosso destino, na crença da misericórdia de Deus. Esse sentimento também produz temores nos invejados, quando chegam a pensar que aqueles que os invejam querem fazer-lhes mal ou criar-lhes algo, o bem-estar do outro é um detonador. Quando alguém é um pouco malicioso e quer ver seus inimigos sofrer, passa a desfrutar da inveja.

Na atualidade, os meios de comunicação têm muito a ver com o incentivo à inveja. Não há programa de televisão ou revista de atualidade que não nos exiba a felicidade de um casal midiático, as férias caribenhas de incipientes modelos ou o novo apartamento da estrela da vez. A inveja dos famosos está baseada numa realidade fictícia. Cobiça-se a imagem que eles projetam, e não daquilo que eles são. Inveja-se algo que de fato não é. Há muitos famosos cujo talento máximo está em exibir seus romances frustrados, diante da incapacidade de demonstrar outro talento  artístico. Basta abrir e fechar a porta do banheiro para que trinta jornalistas se prostrem atrás dela. Nesta sociedade, a primeira coisa que deve ser conseguida é criar a fama de que você é alguma coisa, sem sê-lo, necessariamente. A crença dos demais de que o outro faz sucesso é o que fomenta uma cadeira de erros e de invejas acrescentadas. Recordo-me por alto de um ex-amigo que sempre teve êxito acachapante com as mulheres, e sempre me dizia: “O importante é que elas acreditem que você é irresistível. Então se aproximam de você para saber o que é que este sujeito tem.” Infelizmente, eu mesmo não me considerava tão irresistível quanto era necessário para obter satisfatório êxito no campo da paquera.

Muitas das vezes, são invejadas situações idílicas sobre as quais não se tem informação suficiente. Montaigne destacava a invejável simulação natural da convivência dos povos considerados selvagens pelos europeus da época, que careciam da intoxicação imposta pelas civilizadas. Duzentos anos depois, Rousseau, Diderot, Giambattista Vico e Sade fortaleceriam essas teorias, conservadas pela inveja ao bom selvagem. Sustentaram também o mito da convivência baseada na tolerância na paz, sensualmente rica, mas sem impudicícia, abundante em bens comuns, que eram de todos e ao mesmo tempo de ninguém. Mas as invejas costumam ser dessemelhantes e têm a ver com os desejos de cada um. Diante dessa corrente de invejosos de uma forma de vida, alçou-se o urbano e progressista Voltaire, quando disse a Rousseau: “Você não me fará andar de quatro patas na minha idade, nem me convencerá das alegrias sem distúrbio da selva. Não gosto de comer bagas silvestres e me aborrecem os macacos. A felicidade é uma boa ceia, companhia, conversa agradável, uma bela apresentação team a noite de Paris.” 

Em meu caso, me alegro em me ver cercado de escritores de maior valor, porque a obra dos outros sempre me fez desfrutar muito mais do que os esforçados e sempre corrigíveis escritos que eu mesmo produzo. A inveja que me provocam os grandes escritores foi um motor fundamental em minha vida. Mas sempre tive uma inveja que carecia de mesquinhez, nunca pretendi que o talento dos outros se apagasse. Para concluir, admiramos com o que há de admirável em nós mesmos. Nossa parte admirável é a que admira os demais.  Temos de ser agradecidos ao sublime. As maravilhas a que chegaram Beethoven ou Proust foram produto de seu esforço e entrega. Devemos agradecer a seu virtuosismo e a seu compromisso com a arte dos quais hoje podemos testificar.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Crie um site ou blog no WordPress.com

Acima ↑

%d blogueiros gostam disto: