Ao nascer, a reação é espontânea e não outra senão chorar de forma compulsiva, emitindo logo de estreia um som demasiado alto que incomoda alguns e encanta a outros. Não é de se admirar que todos os demais sorriam e por meio dos seus gestos e expressões faciais celebrem a consumação da vida ao som de um forte choro, talvez, por soar tão alto quanto os sinos de uma antiga catedral a convocar os fiéis, o pranto sirva de consolo para a mãe que pode enfim pela primeira vez ver o rosto do seu filho amado.
Quiçá todo choro fosse trilha sonora de um evento feliz e celebrativo, pois naquele instante a maioria dos presentes já não sente mais tanta surpresa naquela cena, porquanto o ato de abrir o berreiro não passa de mais um marco entre tantos outros nascimentos que ali ocorreram; numa perspectiva mais niilista, uma manifestação inconsciente e natural de desespero de um indivíduo que chega ao mundo, e mesmo que não se tenha ciência disso (afinal, toda forma de premonição se dá às cegas) teme por aquilo que lhe aguarda. O choro que é tido como sinal de fraqueza por tantos, nesse contexto se caracteriza mais como uma forma de protesto da qual o seu autor não sabe nem mesmo o que reivindica, pois o faz instintivamente, e todo instinto é meio que uma fé às avessas. Este choro, apesar de não possuir lágrimas esboça uma forma de incômodo, de descontentamento, contudo, chora-se porque o frio da atmosfera terrestre é a primeira sensação que envolve a pele, e o sopro daquela brisa pouco amigável de sala cirúrgica queima a alma, assim como o frio do inverno cora o rosto nu, e a priori, a separação da mãe que provia toda segurança e paz (talvez a única vez a serem experimentadas em toda vida), provam que o calor e o aconchego por meio do útero se torna por fim o paraíso perdido de todos aqueles que nascem. Logo, a primeira reação esboçada por quem adentra este mundo é o desespero, de certo modo a entrada é pouco triunfal e se revela mais penosa do que comemorativa, doravante, trata-se de um estágio de transferência: do interior de uma barriga esférica se é expelido de modo repentino para um geóide giratório, complicado e pouco amistoso intitulado planeta terra. Há apenas uma forma de nascer, porém, são inúmeras as formas de renascer cotidianamente.
Ainda que sejamos dotados de vários sentidos que permitem diferentes maneiras de protesto, a primeira manifestação é sonora e apesar de desarranjada, revela que vida é a todo instante uma constante movimentação calorosa e barulhenta, diferente da morte que silencia de uma vez por todas os risos de felicidade e as declarações de amor (ainda que falsas e interesseiras). A música celebra a vida; ela demarca a fronteira entre a estafa de existir e a comodidade do ouvir, sendo que quem ouve se cala, e se calar é por vezes necessário, pois são as pausas que enfeitam a música e a música celebra a vida. Destarte, a vida é movimento: das notas numa partitura, duma partitura num pedestal; dos seres vivos no desvairado balé cotidiano.
Prefiro a música que me agrada ao turbulento desarranjo cotidiano. O que espero de um par de fones? Bem, não espero que sejam grandes, pequenos, com maior ou menor intensidade no volume, o que espero é que eles apenas cumpram com a sua função: resgatar-me desta imundície tridimensional que é a realidade, que repetidas vezes fere os ombros de quem carrega neles o peso de existir, como se a vida fosse um verdadeiro fardo que pesa sobre as costas, já que é nesta parte do corpo que se carrega os empecilhos, malas e bagagens quando elas se revelam volumosas demais para que as mãos possam dar conta. É isso que eu espero de um par de fones, que me tirem deste plano consciente e me transportem para as profundezas da minha mente adormecida e estafada de tanto se sobreaquecer. A música tem esse poder e outros tantos mais que não se podem descrever, posto que devem ser experimentados de forma individual, pois bem dizia Nietzsche que “a vida sem música seria totalmente sem sentido”, e o sentido da vida é em ambas as direções. A música é uma das formas pelas quais Deus fala aos homens.
O que espero de um par de fones é que me libertem da culpa alheia, dos desejos insanos e das atitudes irracionais que deixam por herança o remorso que permanece, bem como as ondas sonoras que se propagam pelo ar, as inquietações hibernam feito gulosas lagartas dentro de nós e sofrem metamorfose por meio da memória que as transformam em mágoas, mas cabe a cada um despejá-la de dentro de si, rasgando o casulo e lançando-a ao vento para que voe para bem longe, ou como se faz a um hóspede indesejado, causá-la incômodo com o volume alto afim de que ela vá embora, pois a música é uma ordem de despejo a qualquer incômodo que seja. O que espero de um par de fones é que adentrem meus ouvidos varrendo todo e qualquer rastro de comoção, de poeira e pedregulho que se acumularam ali, resíduos imprestáveis desprendidos de cada palavra má que se chocaram contra meus tímpanos. O que eu realmente espero de um par de fones é que me alimentem com música, pois uma mente vazia é como um terreno baldio, e o que se acumula ali não o torna nem um pouco fértil.
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