O desafio que dá início à discussão será proposto de uma forma universal, não só por englobar uma questão que creio ser vivida por todos, mas possivelmente por denotar, de uma forma ampla e abrasiva o quanto o ócio e o lazer, apesar de serem compreendidos ou encarados por alguns como uma incógnita, se revelem na verdade inalcançáveis para muitos, ao passo que é experimentado em sua plenitude por poucos, dada a urgência e a jactância do ritmo de vida adotadas na era hodierna. A maneira como o lazer é hoje ofertado, é quase que unicamente em forma de produto, de um bem adquirido, em forma de pacotes, sejam estes voltados para o perfil estético, físico ou emocional, previamente elaborados e já inclusos nas agências de viagem ou meios de hospedagem, ambos prontos a serem desembrulhados como um tenro presente que se acabou de receber. Em termos reais, o lazer não é (ou, pelo menos não deveria ser) uma prática tão comercial, haja vista que tais maneiras de oferecê-lo o fazem monopolizando numa forma una: estritamente como bem de consumo. Uma apropriação indevida da recreação, quando na verdade, deveríamos ter em mente que o lazer e o ócio são amplos, e, por assim serem, não podem se resumir de modo algum à formas exclusivas do mundo capitalista. Ora, não se trata o lazer de um costume de encontro consigo mesmo; com outras pessoas, ou com práticas individuais, mas que tem como intuito promover o bem estar e despertar prazer? Então, se encarado dessa forma, nota-se que há um erro por parte dos meios comerciais ao tratar o lazer como um monopólio voltado para poucos, ou, que na melhor das hipóteses, pode ser algo adquirido, e não obstante, unicamente por aqueles que detêm certa quantidade de capital, ou seja, o lazer deixa de ser uma prática livre e universal para se transformar num bem de consumo não durável, onde se paga pela liberdade de possuir seu próprio tempo livre. Em outras palavras, o ócio é sempre instigado como algo a ser buscado dentro das bolhas em que cada um se encontra, nos espaços onde as pessoas se isolam das demais, dentro de seus condomínios chiques equipados com espaços de lazer, que privam indiretamente os seus do restante do mundo, um mundo livre e com espaços inexplorados e vastos, que provam de uma vez por todas que o lazer não se prende à classes, subclasses e regiões específicas, dado que alcançá-lo não exige mais do que um simples passo rumo à aceitação de si mesmo.
A linha tênue que separa ócio e trabalho se torna cada dia mais invisível, dada a proporção das discussões a envolvê-los, que, no fim das contas, não são capazes de determinar os limites que separam cada um deles. Mas, o trabalho é algo que deve ocupar todo o tempo de um ser humano, inclusive o livre? Contudo, o que é este tempo livre se quem ocupa todo seu tempo trabalhando não pode se livrar das obrigações? Talvez seja da alçada de alguns reservar-se apenas ao sono como tempo de descanso (a menos para aqueles que levam seus problemas consigo para cama!). Ocupar-se como pode durante o tempo que se está acordado. Este é o mandamento santo dos que perderam as rédeas da situação, pois bem cita o ditado “mente vazia é oficina do diabo”. No entanto, se de fato inclinarmos um pouco o olhar para o lado religioso, tomando como base o sagrado na constituição da ideia de lazer, de certa forma pode-se encontrar um norte, ou o fio da meada afim de desentrelaçar todo esse embate. Vale ressaltar que no livro do Gênesis encontra-se escrito: “com o suor do teu rosto comerás o teu pão, até que voltes ao solo, pois da terra foste formado; porque tu és pó e ao pó da terra retornarás!”, então, seria o trabalho uma maldição atirada sobre o homem desde o início dos tempos, ou uma sina que o acompanha até os dias de sua morte? São várias respostas que podem ser obtidas, dadas as dimensões e diversidades da crença particular de cada um, embora crer e professar sua fé também são práticas que podem ser incluídas como sendo de lazer, por promoverem a interação social ou a reflexão individual, como bem faziam os gregos ao passarem o dia pensando. Bom, o que se sabe até então é que o trabalho, como todas as diretrizes para a construção de uma sociedade possui sua importância e relevância, e de igual modo, consequências indesejadas para o indivíduo no qual este venha se tornar um exagero. Atualmente existem aqueles que por se encontrarem viciados em trabalho, não abrem mais espaço em suas agendas para os relacionamentos afetivos ou qualquer forma de desligamento que seja de sua rotina, se tornam verdadeiros escravos do seu vício, uma relação quase que obscena com a prática laboriosa que os consome com rapidez e voracidade. São estes os chamados workaholics, ou, na tradução literal, trabalhadores compulsivos, que não necessariamente são produtivos, dado que toda forma de vício acaba por privar o homem da liberdade concedida pelo lazer. Na Grécia Antiga, o trabalho se caracterizava tão somente como uma prática escravista, isto é, algo reservado aos escravos, enquanto isso, para os homens livres, o que contrariava a preguiça ou a inatividade era justamente a atividade, e mais, naquela época pensar, dedicar-se ao espírito e ao corpo, bem como trabalhar o seu interior, eram a forma como os livres daquela sociedade gastavam seu tempo. Houve ainda uma época em que os romanos estabeleciam uma relação direta do trabalho como algo que se faz com a finalidade de obter receita, e o ócio que significava dedicar-se plenamente a si mesmo, em corpo e espírito. A preguiça era aquilo que não se tratava nem de ócio nem negócio.
Não se pode negar no entanto, que a história revela tudo que se precisa saber para compreender o atual momento em que se constrói a sua história, assim sendo, basta uma breve avaliação dos fatos passados, que além de revelar de onde se vem e em que costumes sua sociedade repousa, ainda deixa às claras sob quais pilares cada comunidade ou império do passado se edificou. Por exemplo, no século XVI a preguiça também era um costume abominável, no entanto, o contrário de ser um preguiçoso era se levantar de manhã para ir caçar, cavaleiros e nobres não suportavam a ideia de trabalhar, no entanto, detestavam ainda mais a possibilidade de ficar improdutivo o dia todo. Alguns séculos mais tarde, vieram as grandes colonizações, e com elas, a necessidade de se escravizar os nativos como forma de dominação e obtenção de mão de obra, todavia, os capítulos restantes já se sabem quais foram, com os índios julgados vadios e preguiçosos por não se adaptarem ao ritmo de trabalho imposto pelos colonos. Os escravos, por outro lado, se adaptaram “bem” a estes trabalhos, claro! pois eram obrigados a fazê-los, sob duras punições. Ainda assim, com todas as cicatrizes daqueles tempos sombrios, muitas práticas foram herdadas do povo negro por várias sociedades. O ócio, além de ser em muitas partes do mundo um direito constitucional, ainda é antes de tudo um preceito divino estabelecido por Deus ao final da sua criação (Gênesis 2:1-3), e, a poster, por meio Dele Moisés veio a policiar seu povo com os dez mandamentos, em que um em especial coloca o ócio, antes de tudo, como uma obrigação, um momento de repouso e de cessação de ambas as atividades dos demais dias da semana: “Trabalharás durante seis dias; contudo, descansa no sétimo dia; tanto na época de arar como na colheita” (Êxodo 24:31). Isto é, tanto o contraste entre ócio e negócio, que foi um dilema social para os gregos, quanto a perspectiva divina do descanso no sétimo dia da semana, em termos, o sábado, ou Shabat para os Judeus, denota não só a ideia, bem como a necessidade do ser humano de descanso ou desligamento das atividades de usura que, em demasia, cansam tanto o corpo quanto o emocional de um indivíduo independente de suas peculiaridades.
Questões inúmeras que dividem opiniões acerca do tema, são tão certas quanto o fato de ócio e lazer serem sinônimos. Mas, numa forma bastante dinâmica: o que é o lazer? Ócio improdutivo, ou tempo de edificação particular? Até que ponto começam e terminam as definições que determinam o fenômeno do lazer enquanto atividade humana e de desenvolvimento? Talvez, agora analisando tais questões sob um mote mais humanístico, pode-se chegar a um consenso interno de que o lazer nada mais é do que uma prática que se integra em cada sociedade de modo particular, já que o ócio se trata de algo limitado a um dado conjunto de hábitos num certo espaço e num dado tempo, e que necessariamente, nesta perspectiva, precisa adaptar-se à diferentes formas de vida cotidiana com miscigenações diversas. A exemplo disso, a prática da siesta na Espanha, que nada mais é do que um tempo separado do dia para descanso (geralmente após o almoço), ilustra a necessidade de algumas horas do dia para se elevar a mente à questões que não envolvam o trabalho ou as obrigações, seja para refletir sobre a vida, ler, e até mesmo não fazer nada. Essa possibilidade de escolha revela que a definição do que é lazer vai do gosto e da escolha de cada indivíduo, o que torna esta prática individual mesmo sendo de caráter coletivo, que, como no exemplo, não compete à forma como cada um utiliza este intervalo, e sim o que este tempo significa para o povo espanhol, sendo que sem ele, talvez muitos não teriam durante a semana outro tempo para se desligarem do ritmo frenético do dia a dia. Outras culturas também adotam estes modelos de descanso em busca de se desprender do estilo de vida estressante. A Tailândia é um exemplo de destino para os que buscam a experiência de um retiro espiritual, por meio da meditação e da ioga; são os chamados “destinos zen”. Mais uma vez, tais hábitos revelam muito de seus adeptos, que fazem uso do tempo de lazer para se afastar de tudo e de todos, e do barulho e estresse gerado por estes.
Todavia, não são todos que consideram o ócio como tempo de esvaziamento ou isolamento do restante da realidade, o lazer pode ser uma prática feita junto aos amigos, ou aos mais próximos, ou seja, uma empreitada de cunho íntimo que se permite ser quem realmente é, livre das influências exteriores ou da submissão imposta por terceiros, retratos de uma sociedade teatral. Nesta perspectiva, o lazer permite o encontro e a comunhão com a identidade original, em outras palavras, o ócio é uma oportunidade ímpar para se autoconhecer, para dar-se novas oportunidades e chances de se reconstruir no campo emocional. O ócio utilizado como ferramenta conta a seu favor na busca identitária de si mesmo. Por que não se retirar do meio habitual para retirar de si o que até então é desconhecido? O ócio tem muito mais poder de transformação do que se pode imaginar, e dar o primeiro passo para assumir um relacionamento consigo mesmo, de cumplicidade e satisfação, requer muito mais do que abandonar hábitos, pessoas ou costumes viciosos que rodeiam o cotidiano, exige que você se faça uso do tempo de uma forma que conta a seu favor, ao invés de investi-lo em terceiros que o substituem ao menor sinal de desgaste físico-emocional. Ócio, é antes de tudo trabalhar em si mesmo com as ferramentas que estão ao seu alcance.
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