Idiota Romanesco

 A noite há muito já havia estendido seu negro véu e atingira agora o seu ápice, e após contemplar apaixonadamente a lua, vangloriando-a como se fosse o único astro rei que povoava o centro de gravidade de seus limitados conhecimentos sobre astrologia, levantou-se, virou-se suavemente como de seu costume e se voltou para dentro, rumo a seus aposentos dando de vez por aquela noite as costas para sua luz que o iluminava pálida e parca, no entanto suficiente, sem a intenção invasiva de revelar mais do que um limitado raio de circunferência, nem tampouco de cegar de alguma forma, talvez, seja pela sua condição metafórica cujas designações a contemplam com uma definição feminina, delicada e graciosa, que ele tanto a admirava, e não somente pelo fato científico dela, a lua, permear as noites regida por fases diferentes sem iguais preceitos no universo, que rege inclusive a origem de uma vida vegetal que germina por sob o solo; nas marés do mar, atuando como calmante ou estimulante das mesmas; por fim, foi após este momento de admiração complementar ao seu respectivo signo lunar, que foi despertado de seus pensamentos mais íntimos para subir as escadas rumo aos palcos da vida real, deixando de lado por uns instantes o ambiente restaurador dos bastidores, já que o show precisa acontecer sobre a estreiteza e a limitação dos palanques, restando para os bastidores os momentos de dar o pileque, ou na melhor das hipóteses, a soltura dos verbos mais escrotos mantidos na garganta e das paranoias mais íntimas domadas e resguardadas para este imaculado momento de sesta, de modo semelhante como faz a justiça brasileira com seus mais perigosos condenados.

 Não costumava deixar que as ocasiões quaisquer que fossem lhe fugissem a galope, mesmo que porventura tenha se decepcionado em outras ocasiões ao fazê-lo, em episódios onde abriu a boca tomado por uma excitação que corria-lhe as veias como um fármaco poderoso à base de ópio provocando-lhe leve queimação nos músculos, fazendo-lhe retornar à face um calor avermelhado misto de vergonha com a ânsia das expectativas, e assim tendo por desfecho seu veredito final, com os ouvidos bem inclinados na direção dos rachados lábios vermelho fosco de sua paquera, tendo por microfones de espionagem seus tímpanos aveludados expandidos pela ilusão resultante de demasiada esperança, aguardando o tão almejado retorno de sua romântica e cavalheiresca investida, no entanto cavaleiros já estão e foram deixados de lado há algum tempo, corria assim o risco iminente de dar com os burros n’água; toda expectativa demasiadamente excitada é um risco ao qual se expõe, e não ouvir nada, ou no pior dos casos receber em troca um sorriso pálido e frouxo sem entusiasmo algum, seria-lhe ainda pior do que ouvir sem cerimônias ou rodeios adjetivos antônimos às suas expectações, ou substantivos negativos indicando uma reação de repulsa ou negação imediatas quanto às suas investidas. […] Talvez, bem mais cedo, antes das nuvens e dos pássaros diurnos cederem lugar aos astros noturnos, não fosse tão difícil controlar o desaguar daquela romanesca e melosa enxurrada de palavras por através de seus dedos, cujas gotas esmigalhadas de atenção implorada mantiveram-se retidas em seu peito e dada a limitação que o ambiente tecnológico exerce sobre si no caráter de cupido virtual, fazendo com que apenas as palavras escritas passassem a lhe valer alguma promoção, entretanto estas não carregam e/ou permitem que a mesma carga emocional seja transmitida em comparação com todo o contexto que as engloba quando estas mesmas são ditas ao pé do ouvido.

 Mais um nocaute ao seus sentimentos estava previamente declarado, pois estes, nos seus estados originais, foram retirados dos íntimos cômodos da sua alma e expostos ao ostracismo, às flechas e às bombas atômicas; outrossim, não resistiu à tentação da propícia oportunidade que lhe estava às vistas, e julgando valer a pena, apesar de ainda sentir no peito leve refreamento baseado quanto às suas tentativas anteriores, meio triste, meio embalado por uma onda de motivação, ignorou tudo mais que ainda o acorrentava, inclinou-se bem lentamente afim de atribuir um ar mais romântico à investida, e disse à ela: – você fica deveras bem nas fotos, este fato consumado é uma retórica inegável que ressoa no ambiente dos meus pensamentos e não pude mais mantê-lo sob a custódia dos meus segredos – e prosseguiu – que a lente dos teus olhos façam capturas de momentos não somente iguais, mas sim superiores a estes marcantes, que a duração finita da própria cena força a consagração dos mesmos em forma de fotografias e memórias. Tais palavras tão bem entoadas, e de um certo modo até difíceis de entender, talvez em um século ou dois anteriormente a estes cairiam bem, mas hoje? Realmente foi uma entrega ao abate por pura conta e risco. O que não se sabe ao certo, e é a principal dúvida que pairou no ar como a poeira do Saara sob o oceano Atlântico, é como as frases acima ecoaram dentro da alma daquela idônea dama, se foram absorvidas para a corrente sanguínea, ou se simplesmente ricochetearam pelas paredes do seu coração provavelmente de pedra,  e por fim escoaram junto ao sangue venoso pelos quilômetros de vasos que irrigavam aquele corpo farto e esbelto e depois foram expelidos pelas narinas junto ao dióxido de carbono; o que pode ser adiantado é que o clima que se sucedeu era composto por uma friagem que inverno algum na história foi capaz de reproduzir em termos de sensação térmica ou proporção.

 Deixou um pouco de lado suas desesperadas investidas à la século dezoito, e mergulhou mais a fundo, nas mais escuras e filosóficas questões acerca do ocorrido. Quiçá pudesse saber do que realmente se servem àqueles que se submetem à guilhotina das selfies; qual enigma reflexivo de uma subserviência impulsiona alguém a disparar contra si mesmo os flashes pálidos das câmeras embutidas nos mais diversos modelos telefônicos; quem dirá exatamente qual a obra arquitetada pela aleatoriedade da vida que traçaram o ambiente e a ocasião perfeitas para o registro de um autorretrato; quem dera se as lentes (nem mais estas são solitárias), já que o arsenal traseiro de um smartphone é formado por um conjunto de lentes integradas que têm a cotagem dos seus pixels na casa dos milhões, quem dera se estas falassem e mais que isso, se traduzissem por meio de algoritmos as emoções envolvidas com fidelidade; na certa seriam transformados em mais uma arma de dominação massificada. As lentes que miram as retinas poderiam por assim dizer o que esta menina sentia por dentro de si naquele dado instante, ainda mais neste jogo de espelhos de vidro blindado que se instaurou, tudo isso é estranhamente importante pra mim; importante quanto o ar impuro que respiro; importante, quanto a água contaminada que bebo; tão igualmente importante o mantimento transgênico que me alimenta, e vontade inadiável de defecar que sinto; tão importante como a busca por pistas microscópicas numa cena de crime testemunhada por olhos de vidro: a câmera, suas lentes, seu foco refletido no espelho borrado pelo atrito da flanela com o batom na tentativa de limpá-lo, e que por sua vez reproduz inadvertidamente um mundo inverso copiado à perfeição dentro de si, num jogo paralelo de luz e sombra com os vitrais multicoloridos e úmidos daqueles globos oculares que são a antessala de uma psique gerida por emoções, identidades de uma moça que aguça meu paladar instigando-o ao impulso de devorá-la.

O que foi que levou ao disparo deste gatilho inerte numa tela virtual? Mais um suicídio sem corpo e sem evidência consolidou-se na ação descontrutiva de tirar uma foto de si mesma. Perda de tempo lançar-se no sistema, ademais, as tristezas não podem ser registradas por fotos, nem tampouco as alegrias, o que se capturam são deformações que provocamos nos lábios, no corpo, nas pálpebras, nas testas; enfim, com a finalidade de maquiar a nervura do real e modelar a nosso bel desejo ou prazer a ou as impressões que desejamos passar através desta ou daquela cena. Todos são atores, intérpretes e fingidores consagrados frente a uma lente ou câmera fotográfica; e eu declaro ser com todas as letras o idiota embasbacado de afetos que compõe o protágono desta dramática narrativa romanesca.

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