A intermitente luz vermelha que empenha o importante papel do alerta de segurança, alardeava em alto e bom som revelando a pane geral no sistema; esta luz na verdade é uma metáfora inadequada que me julguei no direito de utilizar para fazer referência às minhas lágrimas; lágrimas de sangue que andei vertendo ao rememorar os itens arquivados na mente nos últimos anos revelando então meu baixo nível emocional, enaltecendo sobretudo a urgente necessidade não só de um backup, mas de uma formatação completa, no entanto em se tratando de assuntos psicológicos, torna-se árdua a tarefa de remoção destes eventuais bugs. Sinto meus dados se esvaindo como por obra de hackeamento, e ao certo não sei bem qual o código fonte escrever para tornar intacta e inviolável esta criptografia das emoções, se é que elas sequer estão às vistas de serem projetadas. O que ocorre é que o célebre aforismo filosófico dos antigos gregos Panta Rei, já não faz mais tanto sentido nesta era de aparências, onde as coisas fantasiosamente fabricadas por consequência não fluem, dado a distorção que os sentidos da própria existência, bem como sua função sofreram com o passar dos anos, e levando-se em consideração o episódio que vivemos numa Matrix sentimental, onde os sorrisos e as expressões de felicidade são simuladas, não passando de máscaras mantidas sob a fachada escura da opacidade, nada mais me surpreende ou me assusta quanto ao meu catastrófico estado emocional.
Por incrível que pareça, estava ainda tragando meus últimos resquícios de força e resistência, quando por finalidade do cansaço consegui dormir, e sentiria-me bastante honrado se pudesse ser testemunha ocular da visita inesperada do João Pestana após tantos dias sem unir as pálpebras no dinamismo imaculado do sono. Mas não era assim que a banda tocava há alguns anos, a marcha começou a se tornar fúnebre e o ritmo das notas distorcer-se num tom melancólico e menor, quando passei a me dar conta de que caminhava em meio a uma penumbra escura, rodeado de víboras e pisando em cacos de vidro, que por ainda ter anestesiada a sola dos meus pés, sentia nada mais que leves desconfortos que posteriormente me arrancariam urros desesperados da alma; embora ainda não ter ciência de já estar despertado para toda realidade simulada que me cercava, não fui capaz de julgar se saí de um estado de cegueira para receber a visão, ou se simplesmente minha cota de fantasias por aqui chegaram ao fim e a realidade se prostrou frente aos meu olhos. Dada esta cegueira que me acometia e a surdez que a acompanhava, tomei decisões das quais depois, já liberto não fui capaz de me perdoar. E com o coração cheio de dúvidas rompi de súbito o pálido sereno da noite iluminado pela rala claridade lunar, como lobo que anda sozinho pelas planícies e montes, farejei a minha presa a quilômetros de distância, sorrateiro feito um gato em busca da minha “toca do coelho”, bem como um sobrevivente na selva virgem e desconhecida, perdido e despido de suas defesas, tal como o pintinho que em busca da liberdade, da fuga daquela masmorra composta por carbonato de cálcio que lhe oprime e sufoca; foi aí que despertei-me para uma verdade nua e crua: eu era a minha própria sombra a ser caçada; a vida exige mesmo momentos de busca pela libertação.
Nasci perfeitamente “normal”, e desculpem o sarcasmo da narrativa, mas é que não se pode sobreviver tanto tempo sem notar que os eventos fazem conosco chacota; a vida é como a dama do xadrez, que vai onde bem desejar, tendo sobre os demais o peso da decisão. Daí em diante passamos a encará-la, a vida, como se esta fosse um show de stand up comedy daqueles de quinta categoria, que para ocorrer precisa se esgueirar entre as paredes apertadas, cujo ar cheira a privadas sujas, e em meio ao odor forte de urina envelhecida e dejetos mal decompostos, onde com muito esforço os demais arredam as cadeiras cedendo lugar para a instalação de um palco nos fundos mal iluminados de um botequim. Não sou pessimista, por obséquio, não me faça tais julgamentos, nem tampouco sou um ateu pelo ceticismo com que me apresento, todavia é que tentando ser mais realista confesso ser menos difícil se preparar quando os fatos não são mascarados a torto e a direito, como aqueles que insistem em não se prevenir em meio ao caos de uma pandemia; e cá pra nós sem trocar o assunto, se é que me entendem, é que deixei de ser tão sério, a tal ponto que agora vivo no choro, de tanto ter dado risadas daquilo que não tinha a menor graça, descubro agora o lado amargo desta investida, como o bobo desta corte que sequer chegou a existir.
A redoma que me fagocitou desde criança de certo modo me protegeu, mas a longo prazo pude notar que embarquei dentro de uma balsa furada, um bote contendo sonhos ilusórios, que fazem parte de um oceano de delírios pré-fabricados ao sol do meio dia, emergi desse mar de agonias como um mergulhador que se vê sem oxigênio na garrafa, e a partir deste evento agoniante fiz da esquizofrenia diária um navio de cargas para partir; partir como se precisasse ir à lua, no desespero da corrida espacial, ou com a mesma urgência de quem compra passagens aéreas bem em cima da hora, ou ainda dos animais mais pesados que por se locomoverem lentamente em relação aos demais, retardaram sua entrada na arca de Noé. No entanto, como um doente mental “contemplado” com o dom de arremontar coisas por se encontrar sob a custódia de forças das quais desconhece, não consegui deixar para trás ou me desfazer das bagagens e das malas mais pesadas, me apeguei a todas como cão sem dono que se apega ao primeiro que lhe oferece um petisco ou uma das mãos para ser cheirada. As vezes a dependência mais cruel se inicia com um simples gesto de vassalagem.
Ademais, nem sempre é possível tocar esta banheira de remorsos adiante, são muitos os momentos em que os impactos das ondas refletem no leme pesando-o e fazendo doer os músculos dos meus braços e antebraços, e como se minha alma ancorasse num porto frio e nebuloso, onde diversas outras embarcações passam diariamente e nenhuma delas atraca por tempo maior que cinco minutos, nada mais, abandonei navio como se faz em meio a um ataque pirata. Sempre é assim neste cais, vejo rostos de milhares de pessoas, dentre marinheiros, marujos e piratas, pescadores de ilusão, pelicanos desnorteados, peixes de todos os tamanhos nas redes e nas pontas afiadas dos arpões, alguns ainda utilizando o pouco de força que lhe restam daquele pitaco inútil de energia que seus músculos queimam a todo vapor, e logo se esvaíam como fumaça de um charuto cubano tragada pela ventania que a encontrara suspensa já a se desmanchar na atmosfera; já outros, aceitavam de bom grado a lei natural das coisas e se entregavam sem resistência alguma ao predatório destino que aqueles homens lhe impunham e agonizavam padecendo em seus últimos suspiros, tendo como visão final um imenso porto, neste caso, o porto da solidão.
Foram muitas partidas que presenciei ao nadar até aquele maldito cais, e como se fosse uma mera testemunha de defesa ou acusação, que aguarda em ansiedade na cadeira do júri a sua hora de falar, fui submetido a visões e situações das mais constrangedoras que não se pode imaginar. Entretanto, as coisas são um pouco mais complicadas do que parecem, porque uma vez mais fui obrigado a aplicar a defesa siciliana em busca de não receber um cheque nem tampouco um xeque-mate, já que meu coração parece ter se transformado de repente num frágil e cobiçado rei do tabuleiro, e qualquer um com a mínima experiência neste jogo milenar bem sabe que no xadrez esta peça alvo é tão somente cobiçada para ser encurralada, humilhada, aniquilada; uma vez sem saída, o perdedor da partida se vê num desfecho composto por um frio e falso aperto de mãos competitivo e estratégico, tendo por último som a ser ouvido o “tic tac” do Relógio Bronstein, já que na sagacidade com que estes golpes e armadilhas são traçados, nenhum tempo é gasto além do bônus que o idiota aqui dá de bandeja para que o xeque seja realizado, não sei bem se por inocência, ou se por carência, preciso rever e avaliar tais conceitos; entretanto seja lá por que cargas d’água isso ocorre, só sei que preciso me aposentar das partidas de xadrez no mundo real e passar a ser um peão combatente, uma torre alta demais para ser alcançada, ou um cavalo selvagem que cavalgue a todo vapor transcendendo os limites das casas e das bordas do tabuleiro no mundo real em que me encontro.
Que beleza de texto Juninho.
Você está cada vez melhor.
Pena que nosso pais não valorize a literatura dos novos escritores.
Abraços de carinho.
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Infelizmente. Obrigado pelo carinho e pela visita. Abraço!!
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