Primeiro de tudo, preciso com urgência expressar com palavras meu testemunho como sobrevivente a este naufrágio após o embarque em canoas furadas, e se eu fosse um pouco mais atento às ciladas, atiraria pedras nestas fantasias! No entanto, nem eu mesmo sei quando tornarei a passos convictos ir em busca de sombra e água fresca na miragem mais próxima, e ouvir canções foi a melhor forma encontrada por mim como forma de desabafar, expurgando a dor e as lágrimas, enquanto reponho o vazio deixado com as belas melodias compostas de bem arranjados acidentes musicais. Foi assim que por hora driblei a mágoa que me corroía, remando entre a tristeza que me abraçava com a mesma intenção instintiva de um urso, e os sussurros velados que me eram diretamente soprados nos ouvidos; desta forma íamos definhando até que um de nós vencesse a contenda. A faixa que me adornava, que certamente não era a faixa de gaza ou a faixa de certo time de futebol que jazia envolta em teias de aranha e coberta de pó dependurada na parede, e que obviamente não é a faixa vermelha ou preta das caixinhas de remédio controlados deixados por sobre a estante, cujo conteúdo foi forjado pela mais refinada química moderna, esta faixa nada mais é que uma polissemia vagabunda, bem como as filosofias de botequim, pois na verdade, neste caso se refere à definição dada para as músicas que o aparelho de som atribui às canções reproduzidas indicando-as no visor, e por hora me dão neste momento a sensação de liberdade, haja vista que nem sempre elas conseguem alforriar-me, e nestas horas específicas, tais faixas vão sendo amarradas umas às outras unidas por nós cegos bem como as tranças louras de Rapunzel, servindo como uma corda bem forte que uso para suicidar a minha dor. Não sei bem como consigo esta façanha de manter em apenas um pen-drive faixas diversas de múltiplos estilos, de mundos completamente adversos, porém reunidas num único dispositivo de mídia compacta, e embora as faixas que tocam bem ou mal intencionadas o âmago frágil da minha alma. Melodias sendo reproduzidas de modo aleatório; me sinto carta fora do baralho, ainda assim busco encontrar o rei em meio esta jogatina de loucos desvairados, destronados de amor. Quando Für Elise do Beethoven começa a tocar, algo me é despertado por esta obra prima instrumental, e dentre lembranças tristes e amargas misturadas à imaginação que é o tempero da vida, materializa-se o velho piano Bosendorfer com teclas de marfim, as partituras, ambas impecáveis no pedestal marrom-café, dividindo espaço com os móveis antigos de mogno ou cumaru, junto a outros elementos coadjuvantes compondo a cena, como o fonógrafo e a lamparina, o porta guarda-chuvas e bengalas, unidas ao cheiro característico de azeite de oliva, combustível célebre dos lampiões, pendendo no ar como uma suave pluma, contrastando com o forte odor de óleo de peroba usado para polir os lambris e os mancebos; enfim, este é o catálogo de objetos que o subconsciente se encarregou de montar dada a época remota em que foi composta a faixa em questão, algo que não ocorre quando uma faixa romântica é executada, quando o coração abre as comportas dos olhos, no momento exato em que na mente é escancarado as portas de jacarandá que vetam o acesso ao porão de memórias, lembrando os traços mínimos dos lábios e os detalhes endêmicos dos olhos daquela maldita fulana que se foi e que eu amava, e confesso ainda amar.
Segundo, não é somente em matéria de música que me permito ser acometido por um súbito turbilhão emocional, enquanto viajo delirado sonhando o insonhável, na utopia de minhas íntimas reivindicações, as utopias mais íntimas que guardo pra mim mesmo sem deixar que se tornem assunto alheio, abrindo possibilidades para chantagem ou fofoca; o trunfo dos desesperados, dos desonestos e dos descarados. Enquanto alço voos impulsionado pelos dejavus que me ocorrem, ouço vozes ecoarem como sons macabros em rituais particulares, onde cada um sabe o valor que tais insights representam para si, e no meu caso particular, pelo meu histórico de relações: amante, amigo e idiota; sinto que sou somente uma bolha prestes e eclodir, e que estas sensações são apenas mais uma volta desta faixa branca que me envolve e que não sai do meu encalço. Sobre as faixas posso concluir muitas coisas, falar muitas loucuras e citar tantas besteiras, todavia, como diz uma vizinha matuta da minha terra: “eu quero é paz”. No mais, sobre as faixas mais coradas da vida, quero dançar e bailar como se fosse um boêmio pé de valsa que não se rende a nenhuma contenda, seja ela romântica, um country norte-americano, um fandango à espanhola, ou até mesmo, quem sabe, um legítimo rock and roll anos setenta. Dançar é algo costumeiro, um acontecimento cotidiano e que me acompanha em ene situações, embora seja eu este legítimo pé de valsa, não obstante confesso ser este estilo de dança um atrativo, ademais, um gênero que me deixa um tanto quanto desengonçado, ao passo que a expressão “dance conforme a música” não subtrai o fato do quanto eu, agora compadecido de minhas tentativas, me encontrava bastante fudido e lascado, como bem definem tais termos do linguajar popular; tanto é que a dança neste contexto, em seu estado mais crítico, revela um deslize dado por distração, entretanto, outrora designa uma rasteira sofrida por alguém, que foi amplamente planejada com antecedência, de certo modo tomado de previsões certeiras quanto ao modo que eu viria a agir, fui estúpido, confesso; dei pano pra manga, porém escapei a passos lentos de uma valsa suave, pois sou dançarino, e sou daqueles malandros que dançam enquanto xaveca, conciliando o equilíbrio perfeito entre os pés e a língua, um jogo perigoso, mas que a poster, caso seje um golpe bem sucedido, é a parte do corpo que triunfará, e a mesma que irá bailar no céu, no céu da boca úmido e caloroso da moça em questão. Nem sempre sou calculista, e por isso não é a todo instante que dou pausas ligeiras dentre um passo e outro, evitando os pisões e as mancadas, os tropeços e os desequilíbrios entre os pares, às olhadas indiscretas pelos arredores, conferindo o ambiente numa valsa e outra para ir atrás de um rabo de saia qualquer, em busca de viver paixões fugazes, líquidas, na esperança de dar vida àquele romance cru, ensaiado à exaustão no ambiente dos pensamentos, muitas vezes terminados friamente e sem gozo, que ao fim da orgia busca apenas trazer alento e dar alívio aos pés descalços, os próprios, os famosos pés de valsa que se encarregaram de trazer tamanho trabalho ao coração.
Por fim, sou um mártir que ainda vive, uma lenda iludida de toda esta farsa que se prova real, estou ferido em meio aos corpos, o único sobrevivente à queda da nau. Por ter-me ferido, por ferir e pagar a pena, fui encaminhado à enfermaria, com o sangue a escorrer tal como seiva na superfície do galho, bem como gota de mel contornando inócuo a curvatura do favo. Uma vez na antessala já podia prever o que estava a meu aguardo, o cheiro característico de anestesia que no ar suspenso flutuava exalado, me remetia às lembranças de agulhas, injeções e vacinas que quando criança chorava desesperado. A anestesia alivia uma dor que de fato é inevitável, as dores da vida, seja num ego ferido, num coração partido ou num braço rachado; e ela não anula o medo da agulha minúscula que irá injetá-la no organismo. Não há anestésico que paralise o medo. Gazes e esparadrapos remendam-me como boneca de pano composta por retalhos, os retrozes comportam as linhas, e as linhas unem cada pedaço, dar os pontos não é difícil, a não ser que seja em si próprio, claro! A faixa que envolve meu braço, não é a mesma que abafa meus tímpanos, os mesmos que ouvem o hit que advém do velho rádio posto aos fundos da mesa, trazendo à tona a recordação malévola daquele baile noturno em que meu coração foi entregue em detrimento aos meus cansados pés de valsa, que cansaram e cederam suas defesas: eu já não podia mais bailar para lá e pra cá mantendo-me a qualquer custo em movimento; pés cansados, corpo parado, coração em movimento. Meros detalhes sem importância; as teias de aranha estendidas dentre as vigas, as vozes ecoando através dos azulejos, as gotículas de gordura impregnadas nos vãos das tampas das panelas, a saliência um tanto quanto obscena do papo do frango que o feitor munido de facas acabara de matar, a tarimba de pedra da bica gasta pelo atrito constante com a lâmina da faca ao amolar; detalhes que foram deixados de lado, e que juntos num somatório qualquer revelam muito mais do que um simples conjunto de memórias bizarras ou detalhes insignificantes; pois os detalhes são a alma da cena. A faixa de memória que não ousei atravessar por medo de tropeçar, mesmo sendo um ligeiro dançarino dono dos mais hábeis pés de valsa, o medo em deleitar-me sobre a faixa zebrada, deitar e rolar enquanto o sol fritava minha pele, há poucos segundos de ser atropelado pelo possante caro da madame ou do conde apressado e despercebido que não é muito acostumado a respeitar pedestres, que no caos de suas mentes e no inferno de suas realidades gemem sobre a faixa em agonia presos em suas solidões, urram de medo do inesperado, do aleatório, ou quiçá premeditado acidente, cujas faixas uma vez mais não garantem que o selo da vida não seja violado.
Certa vez em tempos estranhos me enfaixaram como se fosse uma múmia, logo eu que sou cético quanto aos personagens fictícios, embora tenha sido testemunha ocular de temperamentos um tanto quanto antiquados, que pessoas diversas que cruzaram comigo esboçaram após conquistar todas as minhas confianças, desarmando todas as minhas defesas e depois revelar a identidade verdadeira, trocando de pele e trazendo à superfície a verdadeira fera que jazia oculta aguardando o momento certo de se revelar, como um feroz e discreto lobisomem, porém, neste caso ao som de uma faixa sobrenatural embalada pela mística lua cheia, as mesmas faixas de luz que me envolviam fazendo de mim uma múmia em carne e osso, a testemunhar de fato que as punhaladas mais doídas são aquelas desferidas pelas costas. Qual brando é o caminho da dor? Qual lúcida é a sabedoria que mata? São perguntas das quais as respostas machucam, provando que enfaixar o peito não é saída para livrar-se da dor, somos todos alquimistas inesperientes em busca da tão utópica fórmula do amor. E estas, são as coordenadas que regem um ser; uma faixa de pedestre numa encruzilhada de despachos para orixás; faixas de uma canção triste de um filme que acabou de acabar; faixas de curativo em partes que podem se curar; viver é um ato de coragem, uma forma estranha de se matar, sem que faixas sejam estendidas como forma de homenagem por parte daqueles que te entenderam e agora respeitam a sua decisão.
Puxaaa. extraplou, amigo… Que texto, hein?
Parabéns!!!!
Meu abraço de carinho
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Obrigado pelo carinho. Deus abençoe a senhora.
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