A Laranja

 Não é somente em matéria de vitamina C que este fruto ácido por vezes se destaca entre os demais. Olhar para aquela suculenta bergamota que acabara de colher diretamente da velha laranjeira do quintal lá de casa, é algo que não se pode botar preço. Não há nada no mundo que se compare à emoção e a felicidade de colher um fruto imediatamente do seu respectivo pé; ainda mais para mim que sou mestre em fazer tempestade em copos d’água, entretanto, na mesma proporção sou possuidor de um dom em raridade: o de transformar pequenos instantes, bem como os detalhes que o acompanham numa desmedida e perpétua emoção. Sob os parcos e foscos raios de sol poentes daquela tarde calorenta e abafada do mês de agosto, os mesmos que no auge do dia, em pleno verão castigam a terra já seca e puenta que aguarda ansiosamente o alívio derradeiro trazido pelos pingos de chuva, bem como os sapos que expectam também este momento para saírem do subsolo e saudarem o mundo externo. Foi bem ali que uma velha laranjeira sobreviveu às tempestades e ventanias, aos atentados feitos à golpes de machado, e às pragas diversas que a acometeram. Agora, em minhas mãos está o resultado de tantas lutas, aquela forma redonda e sem vida, composta de uma casca cujo sumo que agride os olhos, por um instante fez-me recordar de épocas tão distantes, e povoaram minha memória doces momentos da infância, quando recolhia atônito pelo quintal todos os limões e laranjas que encontrava para expremer-lhes a casca contra as labaredas do fogão ou uma chama qualquer produzida pelo isqueiro, fósforo ou vela para ver surgir diante meus olhos fascinados uma breve combustão, produzindo uma curta língua de fogo que me entretia como se fosse um grande show pirotécnico, pois o meu olhar de criança se contentava com tão pouco, justamente por desconhecer as ganâncias do mundo reveladas na conturbação da vida adulta. Bons tempos aqueles. Foi esta forma circular alaranjada, amarelada ou até mesmo verde, outrossim a que Cristóvão Colombo, o visionário navegante, tomou como objeto para exemplificar sua teoria sobre a forma terrestre; idem a que dá sabor ao suco que acompanha os almoços de domingo, é esta fruta cítrica e sucosa a responsável por me despertar tamanho desejo, principalmente em momentos de fome ou sede extremas, que vira e mexe rompiam de súbito o ar fresco da manhã, ou o tom alaranjado cor de gema do imenso céu ao entardecer, foi ela a responsável por excitar meus pensamentos dos quais me entrego agora deleitosamente, passando horas a fio arquitetando ideias que apenas eu mesmo tenho conhecimento de como descriptografá-las e revelar seus reais significados.

 Eu sempre fui um tarado por laranjas! Salvo nos momentos em que estava sem fome, já cheio após o almoço ou janta; diga-se de passagem um lanche qualquer também me sacia, mas não mata a minha fome. A fome exige uma variedade maior que um reles lanche vagabundo não é capaz de oferecer. Agora estou saciado, e por assim dizer, faço desta meiga fruta um simples artigo de luxo, um enfeite qualquer que deposito por sobre a mesa sem muita cerimônia, dentro da fruteira enferrujada que a mamãe ganhou da vovó que por sua vez arrematou-a num leilão beneficente da comunidade, e vejo com terno olhar de quem desdenha, aquela laranja madura junto às outras já meio apodrecidas, e logo imagino: vai se corromper. Agora, a disputa é entre os seres alados, os anfitriões do show business da decomposição, os príncipes da hediondez do reino inferior dos elementos putrefatos; as moscas, os mosquitos e os mosquitinhos de prontidão à espera do estágio final dos hidrocarbonetos, as assediando despretensiosamente, de forma descarada se entregando àquela orgia, àquela pródiga chanchada, ao escárnio perdulário que ali se encontra, o “come come” dos frutos desintegrados; ora um, ora outro: agora, o desfecho da existência se faz presente: todas elas estão à mercê das famintas larvas ali depositadas.

 No tangente à meiguice, ao doce remanso da vida, o eufônico sabor da Ambrosia, nos raros instantes em que ela o faz, confesso com um olhar quase afeminado sobre as mazelas do mundo, das porradas da vida que desconcerta-me o crânio, as vértebras e todo resto, teimo em vertê-lo piedosamente àquela laranja, e isso foi para mim semelhante a espiar de esquina uma tenra criatura desconhecida que tenha sequestrado de maneira adventícia minha absorta atenção, e feito com que meu coração alterasse o compasso a galopes intensos como os de uma cavalgada, de forma que eu desejasse me aproximar mais e mais, até que fosse consumado um toque físico, traduzido em um beijo ou um meigo carinho feito com os dedos naquela face rosada em virtude da vergonha atinada no calor do momento, porém, tudo isso após um contato profundo mediado e conduzido pelos olhos, que apesar de possuírem ângulos, dimensões e cores de retina diferentes, se fundiram numa mesma frequência visual, e adentraram mais naquele labirinto desconhecido do mundo particular de uma nova criatura a ser desbravado, a ser conhecido. Tal episódio despertava em mim emoções há muito adormecidas, enclausuradas, empoeiradas e esquecidas num canto qualquer de meus átrios carbonizados. Esta laranja certamente era mais do que uma laranja, uma bola de cristal ou um amuleto talvez; um objeto transcendental, uma esfera mágica, ou outras ene definições existentes para intitular os dejavus da vida. Aquela matéria orgânica inanimada foi capaz de reativar e dar vida a memórias, loucuras e pensamentos utópicos do fantasioso mundo de minha mente sonhadora. Sempre fui aquele observador dito como nato; por consequência legal, vira e mexe me encontrava perdido e concentrado em algum objeto que para qualquer outro nada mais seria do que apenas um objeto, uma fruta, um desígnio cotidiano qualquer, ao qual o hábito repetitivo provocado pelos costumes do senso comum que nos envenena a tal ponto que deixemos que passem batidos esses pequenos detalhes que fazem a grande diferença.

 Tal como ela cansei de estar só, pois há muito ela já não recebe beijos aveludados e suaves, faz tempo que deixara de ser flor para se tornar fruto, e os frutos nem sempre são tão mimados quanto as flores; tal qual meu ego ferido em face da tristezas episódicas da vivência, sinto-a clamar no silêncio inanimado de sua existência, pois sou em partes como uma criancinha, mas não como as mimadas, e sim as que desconhecem o potencial da humanidade em odiar, e deseja ser amado à altura, à procura de um colo macio e um carinho sincero, como a laranja que se cansou de pender no ar, em meio ao nada e se entrega à terra, que pela força da gravidade a atrai incansavelmente. Talvez, ela nunca tenha estado de fato sozinha, sempre fora desejada pela força que a terra exerce sobre ela e sobre as demais criaturas. Alguns desejam em dados instantes a solidão, porém, quase todos sentem a falta de um acalanto, de um instante de carinhos incessáveis, de uma parcela de românticos momentos, com ou sem a presença de  luz, seja ela das velas ou do luar. Meus carinhos incorrespondidos, a ausência de companhia, minha ode à solidão; são verdades que gemem dentro de mim bem como o lobo solitário uivando ao luar no pico da mais alta montanha, aquela que lhe deixa mais próximo possível da dama inerte e flutuante, pálida e fria no universo.

Um cacarejo rouco e grave entoado pelo galo alfa rompem meus delírios junto ao pé da fruteira, uma vez rompido o silêncio misterioso, coloco-me a ferir a golpes de faca aquela que por alguns segundos me despertou tais devaneios, ponho-me a descascá-la com certa piedade no olhar e malemolência nos punhos que logo se dissipam, e expondo a brancura dos favos surgidos por sob a casca macia, ainda me ocorre um pensamento vago, mas que por hora me valeu as dúvidas de toda uma vida: de certa forma a laranja assemelha-se às pessoas, dado que assim como nela, tenho que remover as camadas superficiais representada pela casca áspera para alcançar o doce suco que ela tem a oferecer em seu interior, e de modo semelhante engana-se muito quem se baseia nas aparências para fazer tal discernimento. Nem toda laranja verde está azeda, nem toda laranja doce apresenta-se com coloração madura; muitas que aparentam estarem saudáveis possuem larvas as devorando lá dentro. Perdi-me buscando saciar minha sede e meu desejo de adoçar os lábios já ressecados pela falta de líquido, após tais reflexões minha avidez secou-se tal como a casca da laranja após alguns dias sob o escaldante sol de verão.

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