Eu, Homicida

 Perderei-me aqui na contagem tanto regressiva quanto progressiva, se esforçar-me para relembrar as vezes em que a morte me rondou e cortejou com sua tática sombria de sedução; o que posso garantir a respeito dela pelas experiências pessoais que tive, é que ela mora nas brechas daquelas pequenas falhas e deslizes cometidas nos momentos de distração, e eis que a fatalidade não exige mais do que isso para se concretizar. A morte quando não consegue abocanhar e arrematar em cheio a sua vítima, ainda assim não sai no prejuízo e arranca um pedaço, deixando marcas e feridas que apesar suturarem, ainda assim doem. As feridas na alma não possuem cura, o máximo o que se pode fazer é remediá-las com fármacos e terapias. Sou testemunha de que as dores da alma somente em Deus podem ser acalentadas, e mesmo assim, se houver verdadeiramente fé na concretização do alívio. Quanto aos que morreram, apenas os mais próximos e íntimos sabem e tem ciência da dor deixada pela ausência deles. Quase todos passam por isso, é uma cláusula pétrea que apesar de não assinarmos, está lá no “contrato da vida” desde quando nascemos. A morte é uma fera faminta a espiar-nos como uma onça que tocaia a raposa, e não há o que fazer, pois passa a vigorar aí aquele dito popular que até já criou (e branqueou) a barba: “um dia é da caça, e outro do  caçador”. Quase todos passam pela aflição deixada pela morte; quase todos, ao passo que alguns faleceram ainda bastante jovens ou, em casos mais tristes, sequer chegam a nascer, haja vista que abortos, sejam eles naturais ou provocados interrompem uma vida que sequer obteve a chance de ultrapassar as paredes escuras do útero. Então, penso e penso, repenso e chego a conclusão de que reside aí uma incógnita incompreensível pelo seu grau de complexidade: são estes (os que morrem ou não chegam a nascer) sortudos por não experimentarem as dores da vida? que com suas peripécias moldadas na forma do acaso, nos preparando tristes e contundentes experiências, revelando-se mais uma travessura do que uma gostosura? Pode ser que seja, uma vez que raros são os instantes em que a aleatoriedade do algoritmo que a controla se confunde nos códigos e nos contempla com doces alegrias e surpresas, nas quais me esbaldo como uma criança o faz com o algodão doce.

 Como toda regra tem a sua exceção, também todo fato possui um outro contraditório a ele (este nem sempre agradável aos ouvidos desavisados, como se revela neste caso em específico), ou será que são esses os azarados por não terem provado “o néctar” da vida? Creio que não. Quiçá todos pudessem enxergar nela os prazeres maiores e mais acessíveis que passam batido por sobre a “esteira do progresso” que no fim das contas revela-se mais um regresso do que qualquer outra coisa parecida por nos privar da simplicidade, do brio, da pura essência de viver por viver sem buscar motivos materiais além do essencial, que é viver. Tenho convicção, uma vez que se torna cada dia mais evidente o juízo de que a vida não se trata de acumular para se ter felicidade, e sim de ser feliz para acumular (bons momentos, boas amizades, boas lembranças). Talvez, sejam mesmo estes os que por acaso aprenderam que a felicidade é composta de uma soma de momentos. Quero ser um deles, de certo modo sou um em construção. Me deleitar na luz do sol, no banho de mar, no perfume das flores, no ato sublime de cheirá-las e contemplá-las sem que seja preciso arrancar-lhes com raiz e tudo. Quero ser “mestre em errar”, como diz o Dr. Cury. Quero aprender a presentear alguém com elas enquanto este alguém ainda as pode tocar e admirar contrito as suas cores, e não fazer delas um artifício que “enfeita” a morte (detesto esta ideia), que regada a lágrimas frias marcam a partida ao invés de felicitar a chegada de alguém que de antemão já amamos.

 Não sei bem o que a morte representa para quem já se foi embarcado em sua jangada, cuja passagem só de ida não possui um endereço físico, porém, sei muito bem que para os que ficam a dor por vezes bate a porta em forma de saudade e se conformar com ela é uma das tarefas mais difíceis de que tenho notícia, se arrastando por uma vida inteira e mesmo assim não é aprendida com perfeição. A vida é cheia de mistérios, dramas e homicidas. Eu por exemplo, despido de todos os meus orgulhos e do ego que me prende ao mesmo, posso declarar que sou o mais imperfeito de todos os homens, vagando pecador por sobre esta terra de hipócritas. E sou tão bandido, tão fútil e assassino quanto qualquer outro criminoso estampado nas primeiras páginas dos noticiários. Sou um homicida confesso. Réu primário, secundário, terciário… ordinário. A diferença peculiar que me ressalva estendendo por sobre minha cabeça a mão invisível (e falha) da justiça dos homens, concedendo-me o direito a um foro regado a privilégios, é a razão de não ser um homicida comum como aqueles dos jornais, mas sim, o sou por ter apoderado-me de minha liberdade e feito dela uma arma opressora. Podei em vida tantas flores que nem as cores sou capaz de recapitular todas quais são. O sou, por ter espremido a lagarta inocente que guiada pelo seu instinto selvagem de sobrevivência devorava vorazmente o jardim ou a horta. O sou, por degolar sem compaixão a pobre galinha ou galo que há muito já estava sobre a mira dos meus olhares famintos de predador humano, e após raspar em direção contrária as penas do seu pescoço e ter posteriormente vazado a lâmina da faca numa pedra qualquer que havia no quintal como herdei de aprendizado da falecida vovó, rompi sem culpas a carótida do galináceo fazendo o sangue vir à tona escorrendo morno pelas minhas mãos. Sou o mais perverso assassino das emoções, e o sou por ter machucado o coração de tantas garotas e pessoas que me rodeavam, e hoje confesso que realmente o arrependimento vem, e vem com força trazendo em seu fardo sabores amargos, cujos preços a serem pagos são intensamente caros por sofrerem os altos reajustes do tempo, e este, como sendo o nosso principal adversário, pode ser tanto carrasco quanto condescendente. Sou um perverso homicida por abrir a boca e entoar palavras ao léu sem pensar antes de falar, medindo as consequências dos adjetivos e verbos de calúnia e difamação, que tomado por amargura no coração, deixei que escoassem para fora da boca aquelas palavras destrutivas, geradas no trêmulo e maldito movimento das cordas vocais, aquecidas pelo espírito sombrio dos mexericos, fomentado pelo Exu da fofoca, modeladas posteriormente pela língua, aquela mesma que atea fogo no circo ou põe mais lenha na fogueira. A língua acende o fogo de um inferno para que nós possamos a poster nos queimar. Deixar a língua em liberdade é cavar uma cova profunda e curva com as próprias mãos. Por fim, declaro uma vez mais ser um homicida confesso, e compadecido de meus crimes, peço perdão a todos que feri, sendo que o pior homicídio que cometi foi do meus sentimentos.

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