Despedida

 Numa dessas minhas andanças pela cidade grande, onde com muita frequência vou para resolver alguns problemas pessoais e fazer pagamentos de contas geralmente nos primeiros dias do mês, é que me torno testemunha ocular de diversas situações corriqueiras, cujo desenrolar dos fatos revelam-se comoventes e intrigantes causando-me uma certa surpresa ou indignação, já que no interior de onde venho não existem muitas agitações como aqui, e certas coisas testemunho nos jornais e noticiários da televisão, ou no mais divertido dos casos, nos filmes da sessão da tarde ou nos seriados de um canal qualquer. Todavia, convém lembrar que optei há alguns meses por deixar de lado os noticiários, uma vez que ao me tornar telespectador de tais programas televisivos percebi que me tornei uma pessoa mais triste e até mesmo desanimada, talvez, por ver o lado mais cruel e frio das pessoas sendo exaltados e revelados todos os dias e cada vez com maior intensidade; então, por repúdio à maldade humana decidi abster-me de informações negativas. Hoje em especial, não tinha tantos problemas para resolver “na rua” como dizemos, ao passo que o mês havia sido bastante tranquilo e o trabalho igualmente próspero, e graças ao meu bom Deus, tanto a família quanto os amigos, as galinhas do terreiro e as flores do quintal, bem como a nossa cachorrinha e o gado no pasto, o papagaio e a maritaca verde-escura da minha mãe e os pintassilgos amarelinhos do meu pai, todos, sem nenhuma exceção estavam e haviam passado muito bem de saúde.

 Uma sala fria e vaga quase sem vestígios de vida, era este o cenário que encontrei na recepção do cartório. Para minha felicidade, tudo estava vazio e não havia filas, eu era o único presente ali naquela sala, o único mesmo, já que para minha desagradável surpresa, todos os funcionários estavam no horário de almoço, o que significava em torno de uma hora e meia mais ou menos de espera pela frente. Aquela sala cheirava a mofo e estava me causando náuseas, o aquecedor quebrado fazia com que a sala tivesse um clima tão glacial quanto ao de um freezer causando-me arrepios até na alma. Me surpreendia o despreparo daquela desmazelada recepção; no máximo haviam ali duas luzes acesas a iluminar (e muito mal) todo aquele vasto espaço onde o eco das vozes e dos passos se propagavam sem dificuldades uma vez que obstáculos eram poucos, aquele cômodo frio, cujas paredes descascadas e manchadas em um tom verde-musgo pela ação mofante da água da chuva que infiltrava nas brechas e rachaduras da laje e escorria até o chão, já que o telhado estava com mais buracos e brechas que um queijo suíço, se assemelhava a uma cidade fantasma daquelas do faroeste. Aquele lugar de fato chegava a dar calafrios de tão gelada, confesso que para mim qualquer atmosfera vazia como aquela me incomodaria, gosto de estar onde há calor, onde haja calor humano. Além do vazio gritante, ainda era obrigado a me manter de pé frente à ausência de cadeiras em bom estado, pois as que não estavam quebradas, estavam rasgadas ou faltando pedaços, e ressaltando ainda mais a pobreza mobiliária daquela sala repulsante, contava apenas  com um ou outro móvel que servisse como balcão, onde se pudesse descansar os braços enquanto recebia-se atendimento, e para finalizar, os que ali ainda se mantinham já estavam corroídos pelos cupins. Não dava para ficar parado na solidão de uma sala, que se pudesse falar certamente clamaria por uma reforma. Dei meia volta e fui me sentar lá fora.

 Havia um carrinho daqueles de cachorro quente do lado oposto onde eu estava, estacionado no canto da rua com umas três ou quatro mesas com poucas cadeiras onde a freguesia podia se sentar. Apenas duas mulheres, uma jovem e outra mais madura estavam ali naquele instante: eram mãe e filha. As duas estavam sentadas numa das mesas que comportava até quatro pessoas, era uma barraquinha bem simples cujas cadeiras de ferro já bastante enferrujadas e as mesas em sua maioria descascadas davam de dez a zero nas do fórum. As duas estavam muito elegantes, e isso me permitia perceber estarem ali para comemorar algum acontecimento importante. A mãe, uma mulher de meia idade, tinha seus cabelos castanhos escovados e os prendia com um arco bem simplesinho de cor bege, e usava um vestido azul escuro acompanhado de uma sandália também bastante simples mas que por sinal a deixavam muito elegante. De longe era perceptível ser ela uma senhora humilde, destas que não precisava de muito para se sentir feliz. A filha por sua vez, estava usando uma camisa marrom clara que deixava seus ombros à mostra. Era uma criatura tão meiga da qual eu não conseguia deixar de perceber o olhar tão sereno de alguém que era apaixonada pela vida, cujos lábios avermelhados pelo batom enalteciam ainda mais a sua beleza. Sua pele era morena bem clara, e seu salto vermelho combinando com a saia escura a deixavam tão charmosa e deslumbrante, que as flores plantadas ao lado da mesa num pequeno cercado no cantinho da rua combinavam perfeitamente com seu perfume que eu não podia sentir, mas imaginava ser tão doce quanto seu olhar impactante. A garota folheava um livro de capa verde cujo número de páginas não sabia ao certo, mas, que por ser um leitor assíduo acostumado com todos os tipos, espessuras e tamanhos de livro, pude julgar serem mais de duzentas. Era notável nos olhos da garota o envolvimento com história que lia e a paixão pelo que fazia, o que me levava a constatar (mais uma vez) estar diante uma legítima devoradora de livros. A mãe permanecia cabisbaixa, estava meio que debruçada sobre a mesa e não esboçava lá um semblante assim tão feliz. Havia pairado no ar um certo clima de despedida.

 Haviam se passado uns quarenta minutos, e eu já estava meio que cochilando recostado na parede áspera vizinha ao fórum, o vento soprava calmo e o frio aumentava consideravelmente, era um dia em que o sol não dera as caras. A janela fechada refletia nas suas vidraças quadradas um céu nublado cor de cinza típico de dias de inverno. Até que de súbito, volto novamente meu olhar para o outro lado e noto que a mãe, ainda sentada à mesa, agora levanta-se de repente e de modo totalmente desengonçado que quase a desequilibra fazendo-a cair ao chão despencando em queda livre da cadeira de aço. A filha logo se assusta com o ocorrido já que estava totalmente concentrada na leitura, porém, seus reflexos aguçados a levaram num movimento fugaz agarrar o braço da mãe impedindo a sua caída, logo em seguida, após se recompor do susto e consertar a sua postura, se volta num giro de noventa graus para o carro que acabou de estacionar do outro lado da rua. Estava tão concentrado nas duas que mal vi chegando aquele sedã quatro portas de cor prata. Logo ao estacionar posso ver se materializando através do vidro embaçado do porta-malas a penumbra escura de um corpo abastado; de repente a porta se abre e a primeira coisa que vejo são os sapatos sociais do ser misterioso surgirem na parte inferior se projetando da porta pra fora, e é nesta hora que entra em cena o varão, pai e esposo. Figura rústica e de postura autoritária, homem alto de braços longos e fortes que expandiam com ignorância as mangas frágeis da camisa roxa que trajava. Tinha cabelos de comprimento médio, castanho-claros e usava um óculos de armação arredondada que aparentava ser de alumínio. A mãe logo levanta a cabeça e se dirige em sua direção lançando-lhe um olhar de certo modo compadecido e tristonho, e ele, mantendo a expressão formal lhe devolve o olhar, agora com certo ar de seriedade e autonomia pairando às portas de suas retinas. A filha sem titubear fecha rapidamente o livro como quem temia por uma bronca desavisada do pai, e depois de alguns instantes salta atônita da cadeira e corre em sua direção, ultrapassa velozmente a mãe já de braços abertos pronto para se perder nos do pai, ele se agacha e abre os seus respondendo reciprocamente à filha e os dois se encontram no aconchego único dos abraços bem demorados. A mãe ao ver aquela cena de afeto, para imediatamente e contempla a cena mantendo-se calada. Após a intensa troca de abraços, ambos permanecem em silêncio. Alguns segundos de suspense se sucederam. Até que de repente, ele se desloca alguns centímetros para o lado da garota vira-se, e diz de uma só vez como se estivesse tentando conter a emoção:

_ Recebi uma carta oficial hoje mais cedo – ele tropeça nas palavras, – fui convocado e vou servir ao exército, lutar pelo nosso país. Por alguns segundos ele tenta se manter firme, mas após mais um tempo ele cede suas defesas de homem rústico e eis que as lágrimas começam a se formar nas esquinas cansadas dos seus olhos. Eu permaneço quieto assistindo a tudo, mas, encontrava-me agora perplexo, de certo modo havia me envolvido intensa e emocionalmente naquela visão. A filha começa a chorar compulsivamente fazendo companhia para a mãe que agora tinha o rosto banhado em lágrimas, no entanto, percebi que por contê-las por tanto tempo, a mãe, mais resoluta que a filha, já sabia tudo de antemão e ainda digeria as informações no silêncio da sua dor.  O pai, agora desmanchando-se em choro, abre ao máximo os braços para acolher dentro deles as duas mulheres da sua vida, e os três se encontraram juntos num só abraço caloroso e fraternal provando por A mais B que a família é o bem mais precioso na existência de um ser humano. Do outro lado eu não consigo conter também as minhas lágrimas, pois bem sabia que quem vai em defesa do seu país pode não retornar como um herói, e sim, tornar-se um mártir da revolução ou um imolado em meio à guerra.

_ Amo vocês! É bem verdade que não sei se voltarei – dá uma pausa e logo continua, – mas, enquanto lá estiver, seja vivo seja morto, levarei vocês no coração como objetivo principal em busca da vitória. Dito isto, virou-se novamente para o veículo, abre a porta convicto da impossibilidade de negar-se a ir, entra e sai cantando os pneus sem olhar para trás uma última vez, creio eu que para não perpetuar a dor enquanto os olhares anteriormente cruzados, agora cruelmente se afastavam. A garota coitada, estava desesperada chorando com ainda mais intensidade do que antes, chegando até mesmo a se engasgar com o próprio choro, em seus próprios soluços. O seu mundo desabara ali, à partir daquele instante, e plenamente desarmada de suas forças corre em direção aos braços da mãe onde encontrou o carinho e acolhimento que tanto necessitava naquele momento. Enquanto secava as lágrimas dos meus olhos, imaginava a tristeza daquele coraçãozinho tão jovem que nunca pensou em um dia ver o pai partir para servir em uma guerra, ainda mais que para ela todas as formas de guerra eram causas perdidas. Enquanto ainda assistia aos momentos finais daquele triste desfecho, não pude perceber que as portas do fórum já estavam escancaradas de um canto a outro e uma fila que dobrava o quarteirão já havia se formado. A hora do almoço há muito tinha terminado.

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