Já na calada da noite encontrava-me finalmente sentado no banco de trás do táxi seguindo para casa, enquanto buscava um pouco de ar fresco pela janela cujo vidro encontrava-se entreaberto, na tentativa quase vaga de recuperar-me do inconveniente ocorrido há alguns poucos minutos, e que se deu pela demora do táxi levando quase uma hora para chegar. Nada me irrita mais do que atrasos. Uma outra coisa ainda neste contexto e que também me tira do sério são os engarrafamentos infernais típicos deste horário catastrófico de fim de expediente, onde todos, principalmente os táxis, sempre se atrasavam (excepcionalmente comigo), e sucessivamente assim ocorria toda sexta-feira, então, de certo modo aquilo já havia se tornado de certa maneira um hábito, detestável e aterrorizante, mas um hábito, suportável como tantos outros aos quais nos adaptamos.
Como detestava atrasos; isso porque não ouso nem pensar na possibilidade remota de dirigir, só de imaginar sinto calafrios mórbidos a me percorrer a espinha, automaticamente, em questão de segundos recordo-me do trágico acidente de carro que ceifou a vida do meu irmão mais velho e que custou as pernas da minha mãe. Quem não teve a mesma sorte foi a jovem pedestre que por triste coincidência passava no local naquele mesmo instante (mais uma que estava no lugar errado, no momento errado) e foi atingida em cheio pelo automóvel desgovernado. Uma falha mecânica acabou por transformar aquele belo passeio em família, num trágico episódio que estampou as edições dos jornais locais nos dias que se sucederam. Todas estas tragédias somadas bastaram para gerarem em mim um trauma profundo de dirigir carros que a mais vaga ideia por tão inofensiva que fosse, de me assentar frente à direção e empunhar um volante, já me causavam uma ânsia de vômito incontrolável.
Perdido em meio a tais recordações, mal reparei que já havia chegado ao destino, neste momento, desço tão atônito do carro que quase sigo em direção à recepção do apartamento sem antes pagar pela corrida. Ultimamente andava tão distraído e atarefado, o que tornava minha memória falha e pouco eficaz, tamanho era o grau de desatenção que não raras vezes quase fui atropelado pela rua afora ao atravessá-la sem me certificar de que era seguro fazê-lo ou de que o sinal estava aberto para que a travessia pudesse ser feita. Estes são alguns dos efeitos do modelo de vida capitalista no novo milênio. Depois de finalmente acertar as contas com o motorista, sigo meio desengonçado e ofegante em direção ao saguão de entrada onde passo quase imperceptível pela recepcionista, já de braço estirado com o dedo indicador apostos para apertar os respectivos botões correspondentes ao meu andar e quarto. Para minha alegria o elevador não tardou a chegar, o que era algo raríssimo de ocorrer, principalmente nos últimos dias que o mesmo vivia interditado para manutenção, sobretudo nas sextas-feiras. “Bom, pelo menos este não se atrasou”, logo pensei aliviado.
A porta abriu-se imediatamente enchendo de luz os meus olhos e de alegria meu coração coberto por aquela estafa característica de finais de semana, para outros aquela cena poderia ser apenas a de uma porta qualquer se abrindo para alguém que a solicitou, mas para mim não, frente aos estressantes episódios ocorridos naquele dia e semana, era como se os portões do paraíso se prostrassem escancarados diante de mim, que com semblante compadecido, dou longos passos em direção ao seu interior enquanto inspiro longamente de tal forma que o ar estufa completamente meus pulmões, tragando uma rajada de ar puro que adentram as minhas narinas varrendo qualquer vestígio restante de cortisol remanescente em minha corrente sanguínea, e de imediato trazem-me um relaxamento que há muito não sentia.
Andar de número 22, enfim encontro-me de pé no corredor que dá acesso ao pequeno apartamento em que vivo, que fica mais ou menos no centro daquela extensa galeria. Naquele momento já estava um pouco mais relaxado e tranquilo, tanto que caminho agora em passos lentos e completamente despreocupados em direção à porta cor de marfim, cujas dobradiças eram douradas e a maçaneta fosca em tom marrom café, davam à porta uma textura sólida e sem graça, nela havia uma gravação em aço com o número 45 cravado mais ou menos à altura dos olhos. O magic eye estava tapado, já que não era muito fã daquele maldito orifício que se revela de uma certa forma um ponto vulnerável para quem se encontra do lado oposto ao que batia ou tocava a campainha. E enquanto perdia-me em meio ao pesado molho que continha todas as chaves da casa, recordo-me de mais um trágico caso ocorrido na minha infância. Certa vez, meu irmão do meio brincava distraído na rua em frente à nossa casa enquanto corria atrás da bola pra lá e pra cá, distraiu-se com sabe-se lá o que, ao passo que a bola ainda no ar em consequência do último chute recebido, desvia a sua rota e vai parar no jardim da vizinhança. Como não haviam cercas ou cachorros e a porta que dava acesso aos fundos era uma velha cancela de madeira, cuja tramela podia ser alcançada por qualquer pessoa (inclusive uma criança de pequeno porte), vivia mais aberta do que fechada, nisso, sem titubear ou se intimidar por estar invadindo propriedade alheia, meu irmão simplesmente se dirige até lá a fim de recuperar o brinquedo que diga-se de passagem, era o seu preferido.
O que não sabem até então a respeito dele, é que quando criança até meados de sua adolescência, meu irmão foi um jovem muito levado e arteiro capaz das atrocidades mais escabrosas que se pode (ou não) imaginar, e sabe-se lá por qual razão, resolve do nada se dirigir até a campainha e apertá-la tranquilamente com ar de quem estava bem intencionado, mas fato é que ele não estava nenhum pouco. Bom, o que sei é que ele sempre fora uma criança um tanto quanto fascinada (e até mesmo fissurada) por campainhas, uma vez que grande parte dos episódios em que vizinhos mais próximos, vindos de todas as direções queixar-se dele para nossa mãe, tinham como pauta principal aquele velho truque (que ele realizava à exaustão e com maestria) o de tocar a campainha repetidas vezes e se esconder atrás do primeiro arbusto mais volumoso que encontrasse pela frente, até por fim ser descoberto pelo dono da casa, que na terceira ou quarta vez no máximo, espiava com a porta entreaberta sem que o pimentinha percebesse, e quando o fedelho menos esperava, era agarrado pelo braço. Porém, naquela ocasião ele resolveu ir muito mais além e a brincadeira inofensiva cedeu lugar à maldade inescrupulosa rara de se encontrar em corações de criança. Sabe-se lá porque (julgo eu que por vingança), ele apanha um pedaço de vergalhão que jazia caído ali por perto, dobra-lhe insistentemente para lá e pra cá até que ele se partisse ao meio e após ter alcançado seu objetivo se dirige à porta.
Antes de tocar a melodramática campainha, ele trata de arranjar algo em que pudesse subir para alcançar o orifício da porta. Não foi tarefa difícil encontrar algo que pudesse servir de degrau, já que havia espalhado no quintal uma porção de pedaços de madeira, pedras e afins. Uma lata de tinta vazia foi a única coisa leve que ele conseguiu encontrar ali mesmo dentro dos perímetros do jardim que a propósito, era imenso. Uma vez munido dos suportes necessários para ficar na mesma altura do tal magic eye, ele sem recuar em sua ação minuciosamente calculada, prepara-se para o clímax desta história macabra e toca a maldita campainha cujo som nesta ocasião em especial, se tornara a trilha sonora que antecipa um ataque perverso de um jovem endemoniado. Quando o vizinho se aproxima, anunciando a sua chegada por passos pesados cujos ribombar das grossas botas que trajava, adentravam os ouvidos aguçados de meu irmão, que conseguia calcular com precisão cirúrgica a distância que o alvo se encontrava da porta, antes mesmo que a maçaneta começasse a girar, ele ergue sua mão para trás enquanto com a outra se apoiava na porta afim de não se desequilibrar, e com todas as suas forças e uma pontaria digna de premiação, enfia o pedaço enferrujado de metal pelo orifício onde o olho castanho de pobre mártir do outro lado, registra sua última visão antes de testemunhar a dor mais terrível de sua vida sucedida pela opaca escuridão.
Bom, o resto da história nem convém ser contada, já que o pior dela fora relatado, o que cabe contar é que meu irmão foi tão surrado pela minha mãe, que os urros dados por ele, bem como as lágrimas que foram vertidas são lembranças das quais recordo-me com nitidez e certo calafrio corrente na espinhela, que nem mesmo o tempo poderá varrer para baixo do tapete do esquecimento tais recordações de um episódio infeliz. O vizinho coitado, foi parar no hospital, e por sorte ou por milagre, não sei bem ao certo, não perdeu mais do que a visão de um dos olhos em função do comprometimento total do nervo óptico; o que sei é que aquele nosso vizinho me deu uma das maiores lições de empatia que presenciei em minha infância, foi de uma atitude ímpar a sua em aceitar os milhões de pedidos de desculpas da minha mãe sem pestanejar, e ainda, ir pessoalmente conceder o perdão ao meu irmão na nossa pequena casa logo após receber alta do hospital. Confesso humildemente e até meio emocionado que aquela atitude de sua parte tocou-me profundamente, e posso dizer que foi ele o grande responsável pela minha conversão ao cristianismo; e também, cabe ressaltar que é daí que vem o meu pavor do tal magic eye, ou se preferirem, aquele pequeno orifício óptico que a maioria das portas têm.
Meu Deus do céu…que menino.
Eu acho que nunca na vida houve outro que nem esse rsrs
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Pois é, muito peralta kkkkk. Obrigado pela visita ❤
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