Hibisco

Dobrei rapidamente a esquina do quarteirão como quem não queria nada além de resolver o que tinha em mente, de fato, a pressa é inimiga da perfeição, mas apesar desta presente realidade, era evidente a minha ligeireza, e aumentando gradualmente a velocidade dos meus passos ao longo da rua estreita pela qual caminhava, prosseguia com a mesma convicção de um atleta numa maratona mundial. Convenhamos que não era um dos meus melhores dias, e embora não tivesse me encarregado de ler as notícias matinais (aquelas mesmas que são uma das grandes responsáveis por me chatearem logo de manhã), já que a ânsia por sair bem cedinho antes mesmo que o sol fosse saudado pelo galo carijó que estava já apostos no poleiro como é de seu costume, era maior do que qualquer cerimônia ou ritual matinal. A roça é um paraíso em comparação com as turbulentas cidades das quais se tem notícia, ou pelo menos daquelas que são vizinhas ou estão no entorno do local em que se reside, no meu caso, apenas há alguns minutos daqui. Em dias como esse só Deus sabe como desperto de manhã já acelerado tomado por uma certa ansiedade, uma vez que nestas circunstâncias me deito já com o pensamento fixo nos problemas a serem resolvidos no dia seguinte, e neste caso mais específico, ter que ir à cidade não é uma tarefa do meu agrado, entretanto as contas e os compromissos não estão à par dos nossos gostos e desgostos, sendo assim, sou obrigado a dar um salto quase que acrobático da cama deixando para trás o calor aconchegante dos cobertores, já que se eu ficar adiando de cinco em cinco minutos o momento de me levantar, logo irão se passar meia hora, e daí a pouco uma, uma e meia, e quando me dar por conta já estarei deveras atrasado, e cá entre nós, confesso que nada consegue me irritar mais do que atrasos desnecessários.

A vida é mesmo um negócio esquisito e complicado de se entender, como boa dramaturga que é sempre dá jeito de criar tramas improváveis e os enredos mais escabrosos que se pode imaginar, sempre fico matutando quão acentuada deve ser a complexidade dos algoritmos que regem o destino e as impensáveis obras do acaso, feitos que nem mesmo os cientistas mais célebres e brilhantes da nossa época ou de outras foram capazes de elaborar. Ah! Que bom seria poder brincar de deus, e ter as chaves ou na menor das hipóteses, os códigos que concedem acesso ao futuro ou o passado, certamente seria uma experiência ímpar; mas pensando melhor, acho que está tudo bem como está, já que ao ter acesso a alguma forma de poder, nós, seres humanos passamos a agir como animais irracionais que não medem as consequências de suas ações. Bom, deixando de lado a fantasia e a ficção, foi numa destas distrações pela rua afora (porque sou desses que se atém aos mínimos detalhes ao andar pela rua, e que não raras vezes se depara com um poste, um hidrante ou qualquer outro objeto do meio urbano pelo caminho), que na aleatória espera pela abertura do sinal vermelho, avisto há poucos metros vindo na mesma direção, porém na via oposta, uma criatura tenra e elegante, a passos lentos e sincronizados que até pareciam ser coordenados por uma exímia inteligência artificial, já que aquela harmonia, a mesma que fazia balançar pra lá e pra cá seus lisos e esbeltos cabelos castanho-claros, fazia-me ao mesmo tempo perder o fôlego e a pressa com a qual estava, de súbito um calafrio familiar me subiu ao peito, e logo meu coração se enchia de uma sensação já conhecida e ao mesmo tempo temida; meu Deus! Eu estava me apaixonando à primeira vista! Mas, isso não existe, não podia ser! Mas era, eu estava realmente diante de uma princesa, justamente no momento que havia me conformado em continuar sendo um sapo até o fim de meus dias. 

 Aquela era uma visão paradisíaca, daquelas que os cinemas sabem reproduzir com fidelidade aos detalhes nas cenas de amor naqueles títulos clássicos do romance. Por alguns instantes julguei ser uma miragem, todavia não estava num deserto com temperaturas escaldantes, e sim situava-me numa grande selva: a selva de pedra, a mesma das quais ando tendo tristes notícias através das páginas rasuradas do jornal, e por tal razão mal poderia desconfiar que em meio aos espessos vergalhões e as muitas toneladas de concreto o amor poderia brotar provando-me mais uma vez a força deste nobre sentimento. Bem, eu estava errado, o amor sempre vai continuar nascendo nos lugares mais improváveis, e no mais dramático dos casos, renascerá das cinzas como a milagrosa Phoenix. Meu dia iluminou-se por completo com a mesma clareza que o sorriso ilumina a alma daquele que recebe uma boa notícia. Nos mínimos detalhes (aqueles que exigem uma concentração precisa), que unidos como um todo revelam o magistral conjunto da obra, que pude imediatamente notar algo que ali se destacava e roubou-me de início toda atenção: era uma delicada e rósea flor de hibisco que ela trazia fixado junto à sua orelha direita deixando-a ainda mais bela e charmosa, no entanto, a suavidade daquelas pétalas, por mais lustrosas que fossem, não conseguiram ofuscar  a luminescência daquela mulher, a coisa mais linda que meus olhos tiveram a oportunidade de enxergar naquele calorento e abafado fim de manhã. Meus batimentos cardíacos elevavam-se à medida que ela se aproximava, e sem pressa, sob a luz deste mesmo sol que por vezes escalda minhas esperanças, redescubro um lado adocicado da vida, este mesmo que teimo em me esquecer por estar tão preocupado com o amanhã ou aprisionado nas saudades mal resolvidas do ontem, e nesse embate sem fim, no dilema insolúvel da ansiedade, deixo que passem batidas por sob meus pés e diante dos meus olhos, provando-me uma vez mais que toda preocupação desnecessária no fim das contas é uma forma de cegueira.

 Ainda ali, paralisado embaixo do semáforo carcomido daquela esquina feia e desbotada, fui capaz de enxergar de um modo único a beleza tão rara daqueles lábios carnudos e avermelhados, acompanhados de um olhar escuro e intenso como as enigmáticas noites, que num certo clima de luto pela ausência da lua, não se permitem perderem o seu encanto. Aquela visão me mantinha estático sem piscar os olhos, aquela mulher me despertava novamente o calor da paixão, que ora se revela reconfortante, ora se revela perturbador, no meu caso em especial ainda neutro por se tratar de uma paixonite qualquer que na aleatoriedade da vida encontrei. Pode ser que muitos não me compreendam com fidelidade aos detalhes, haja vista que apenas aqueles que ainda se atrevem a amar ou se permitir  apaixonar mesmo frente aos desafios mais comuns a serem enfrentados, sabem a sensatez destas palavras que narro; ainda paralisado e com os olhos começando a vidrar pelo ressecamento, tinha meu pensamento fixado em apenas uma coisa: beijar-lhe a alma como um colibri beija as flores de um jardim, e saciar minha sede de amor bebendo do doce néctar matinal de seu olhar sereno, aquela que carrega a flor e cuja doçura dos passos me fazem imaginá-la numa espécie de passarela na qual desfila deslumbrante apenas para mim, banhada por uma chuva de pétalas de rosas multicoloridas, sequestrou sem saber todas as minhas preocupações; bem, não me julguem desvairado ou algo do tipo, os desejos de quem está sob a hipnose da paixão momentânea são no mínimo loucos, no entanto, a fidelidade às regras gramaticais pouco importam nestes momentos de transe, pois as palavras passam a ter um novo significado.

 Quiçá eu tenha mesmo o dom da jardinagem, embora nunca tenha me atrevido a plantar flores nos fundos arenosos de meu quintal, sempre soube muito bem admirar as flores plantadas em outros quintais, sem que fosse necessário arrancá-las para sentir a emoção e o prestígio de ter em mãos uma forma tão suave que colore o dia de alguém que por um acaso esteja cinzento se sem cor, cuja felicidade jaz esquecida nos cômodos porosos das aortas comprimidas e nos becos empoeirados da mente humana, assim como o meu dia estava se dirigindo para tal. Aquela flor, além de despertar em mim um sorriso, trouxe de volta o característico e intenso brilho no olhar há muito ofuscado não só pela poluição cotidiana ou as decepções corriqueiras que por depositar minhas expectativas na vida alheia sofria; a flor de hibisco em questão, além de combinar com aquela pele morena bem como a cereja que enfeita o bolo dando a ele um toque final, trouxe-me um aconchego a mais e mostrou-me que sim, ainda existem os amores de esquina, as paixões de adolescente, os encantos de criança, e mesmo que não durem mais que alguns instantes, estão lá à nossa espera em algum ponto do tempo e em algum lugar do espaço.

 Não sei bem como poderia fazer para que aquela flor não murchasse ou se perdesse no tempo como bem são as que habitam os jardins mais diversos da cidade, o que eu sabia é que a dona daquela flor mexeu com as minhas bases emocionais. Naquele dia tornei-me de certa forma um velejador prestes a naufragar bem às margens do mar do amor, e padeceria uma vez mais na orla das emoções fantasiosas cujas areias utópicas sequer mereciam ser pisadas por pés tão egoístas feito os nossos. O ego humano é capaz de tornar uma ilha paradisíaca numa terra devastada e deserta em questão de dias, disso tenho certeza absoluta! Enfim, aquela moça foi o colírio que faltava para me confortar os olhos, logo eu que já desacreditava que as paixões ainda existiam e tinham alguma relevância no mundo real, o que eu sabia até então era que certas coisas aconteciam quando nossa ânsia por encontrá-las ou obtê-las já não mais nos dominavam, nosso preparo para certas situações envolvem sobretudo calma e maturidade. De qualquer forma, aquela moça cuja pele num tom rosado se aproxima ao de uma romã madura; a sutileza daquele hibisco combinando com seu vestido rosa claro cujos reflexos solares a tornavam ainda mais graciosa e dona de um charme incomum; aquela, a mesma que dispunha de uma face orlada por lisos cabelos castanhos, despida de qualquer maquiagem, foi mais uma das paixões repentinas e inesperadas que tive em minha vida, no entanto, de todas estas aventuras fogos-de-palha que vivi, nenhuma destas foi tão marcante quanto aquela morena de vestido claro no sinal vermelho, haja vista que aquele hibisco rosado, apesar de ter sido descartado por ela há poucos passos dali, ainda que tenha murchado e deixe de existir em função da decomposição, ainda assim eu sempre me lembrarei dele como marca registrada daquele saudoso episódio onde me apaixonei passageiramente por uma flor que carregava outra flor: o hibisco da paixão.

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