Crianças são verdadeiras mestras quando o assunto em pauta é brincar, eu por exemplo me encaixava muito bem neste seleto grupo, e sem exageros. Foram anos incríveis aqueles, os dias em que fazia minhas peripécias e artimanhas como ninguém, parecia até que as broncas e ameaças feitas em função das aprontas anteriores não passavam de uma notificação sem peso penal, isentas de graves consequências. Embora tenha me criado na maior parte do tempo sozinho e sem irmãos (e diga-se de passagem, sempre fui de ter poucos colegas), ainda assim não hesitava em fazer uma bagunça danada quando a ocasião me concedia a dádiva da oportunidade. Poucos locais eram propícios para “dar meus shows” como a sala de aula ou a escola como um todo, era o cenário perfeito com direito a plateia e tudo, local ideal para que minhas brincadeiras, bem como as artimanhas abandonassem o campo da imaginação e ganhassem vida. Juntamente aos meus coleguinhas de classe, também repletos de energia e igual vontade de gastá-la, tornávamos a vida dos professores ainda mais complicada, e pra piorar, muitos deles mais ousados do que eu, eram autores de atrocidades inimagináveis mais petulantes até que as do Denis pimentinha, estas mesmas que prefiro resguardar-lhes de detalhes, já que fogem aos meus costumes de criança inocente cujos subterfúgios não passavam de leves infrações. Qual criança nunca quebrou aquele vaso de flores sobre a cômoda de herança para qual a vovó tinha tanto carinho, ou ainda o retrato emoldurado que a mamãe com tanto zelo mantinha pregado junto à parede ao lado de outros de igual importância? Nossa, como ela excomungava todos os nomes possíveis que se recordava, quando eu sequer pensava em arriscar um desforado lance com a peteca ou a bola, teimando em fazer da sala de casa um campo de futebol ou uma quadra de vôlei improvisada. Pois é, aos que nunca agiram desta forma quando criança, sinto informar que a infância de vocês possui uma falha irreparável. Por ter este ou aquele sonho, é que todo adulto nunca deixa de ser criança, a diferença básica desta contenda emocional é que as crianças sonham, desejam e até vivem aquilo como se já o tivessem conquistado, os adultos por sua vez, desejam e sonham, lutam para conquistar, no entanto, nas raras ocasiões em que conseguem, já não têm mais tempo nem condições físicas para viver a mágica daquele momento.
Uma das coisas que me recordo com bastante carinho e das quais sinto tantas saudades, são os episódios em que minha mãe, tomada por uma indignação que beira os limites da existência, me chamava compenetradamente a atenção, ou em casos mais dramáticos e desesperadores me xingava, e logo em seguida tecia uma ameaça: moleque, cê vai apanhar! Tudo isso em decorrência de alguma transgressão de minha parte, de alguma ordem dada ou aviso previamente estabelecido que foram transgredidos, já que eu, como arteiro de mão cheia que era, os extrapolava de todas as maneiras possíveis, e aí não tinha jeito, era vara mesmo e o couro comia solto. Quando a surra era de chinelo eu ainda agradecia, já que não ardia nem doía tanto quanto aquela aterrorizante varinha de eucalipto que lambia minha pernas e cochas com tanto apetite que eu me sentia sendo devorado por ela, enquanto sentia o tempo passar tão lentamente parecendo trabalhar a favor da mão zangada e concentrada da minha mãe e contra mim. Essa vara é mesmo cabulosa, para todos que já tiveram o desprazer de ter uma seção em particular com ela após aprontar uma das boas já estando a mãe no limite da paciência, sabe bem e com detalhes do que estou falando e se lembra com fidelidade, agora não mais com pesar, já que é fato passado da infância, e bem sei que muitas coisas que o tempo levou para longe são recordadas com um sorriso bobo e desapercebido no rosto. Bem, para aqueles que de algum modo tiveram o “privilégio” de apanhar somente com um chinelo de dedo, e não com cabos de eletrodomésticos, fitas de couro ou lascas de bambu, vai aqui uma pequena e breve descrição da temida varinha que cito acima; não é uma vara comum, e avaliando assim com maior cuidado, tenho até a impressão que ela é obra de uma espécie de “tecnologia avançada” que trabalha em favor das mães, sendo que tem junto ao seu ramo principal vários galhinhos menores, e quanto mais fina ela for, mais arde ao entrar em contato com o lombo desavisado de criança bagunceira, mais a surra dói e mais devagar nos demoramos a esquecer dela. Adquirida de forma rápida e acessível que dispensa cerimônias ou rituais de qualquer tipo, é cortada com a faca da cozinha mesmo a alguns passos quintal adentro, não é descascada nem lavrada, apenas suas folhas são arrancadas sem muito zelo, e eis que ela já está pronta para ser usada.
Apesar de ser uma criança sapeca, eu sabia que tudo aquilo era consequência de uma falha de minha parte, e sabia também que a minha mãe o fazia com certo pesar, entretanto, ao mesmo tempo temia futuras falhas no meu caráter caso eu passasse ileso após desrespeitá-la, e em decorrência de tais episódios, por experiência própria sou capaz de afirmar que palmadas e varadas, quando aplicadas como elemento disciplinador, não são métodos de tortura e tampouco meios que violam de algum modo os direitos da criança como insiste em dizer a lei. Nunca conheci uma criança que morreu ou ficou aleijada por tomar umas varadas bem dadas de vez em quando. Outra coisa que me trás bastante saudade são as célebres falas que minha mãe entoava quando buscava enfatizar uma ideia quanto a algo que eu, por preferir brincar ou vadiar, me negava a fazer. Um exemplo que não me sai da memória e que tenho rápido acesso quando interrogado, foi um episódio em que cheguei da escola totalmente coberto de lama, era um dia chuvoso daqueles que a fina garoa caía o dia inteirinho; tudo bem até aí, o problema todo é que eu não podia ver uma poça d’água ou de lama que logo me punha a brincar e a rolar dentro delas. Certo dia, depois de uma aventura dessas no caminho de volta pra casa, cheguei completamente coberto de lama, e minha mãe imediatamente ao me ver, após se opor ao ocorrido e me repreender com duras broncas, me obrigou a lavar as próprias roupas. Neste episódio isolado ela não me bateu, não sei que milagre foi aquele, mas acho que foi uma chance que ela estava me proporcionando a fim de que eu pudesse concertar o erro cometido através de uma alternativa que não envolvia punição física, já que as mães bem sabem como moldar corretamente o caráter de um filho, que no caso é um ser humano em construção. Apesar de contrariado, confesso que fiz, mas fiz reclamando, e nada me incomodava mais naquele momento que a borda fria do tanque de pedra que estava ainda mais frio em decorrência do clima gélido típico de dias chuvosos. Enrolei, reclamei, indaguei, mas por fim acabei, e não é que ficaram bem lavadas? Pois é, e foi então que minha querida mãe se aproximou meio cismada, lançando logo de início um olhar desconfiado quanto a veracidade da tarefa concluída, mas no final das contas ela cedeu suas defesas e me elogiou pelo trabalho bem feito. Apesar de me dar muitas broncas, minha mãe sempre foi carinhosa e dedicada, sabia muito bem elogiar quando a ocasião exigia elogios. Muito bem, disse ela. Tá vendo só? Quebrou a suas mãos lavar as suas roupas? Agora vê se aprende a não rolar mais na lama como um porquinho no chiqueiro. Estas falas sempre ficarão eternamente marcadas em minha mente, até porque foram elas responsáveis por fazer de mim o homem que hoje sou, mas acima de tudo, agradeço imensuravelmente a minha mãezinha, que me criou com os mesmos valores com os quais foi criada, e estas falas que saíram de sua boca, se tornaram minha principal filosofia de vida, uma vez que as mães tem uma filosofia própria, mesmo nunca tendo lido Nietzsche ou Espinoza.
Teu texto está sensacional.
Cada vez te superas mais.
Parabéns, querido poeta escritor.
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Obrigado pelo carinho ❤
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