Mal amanhece o dia, e já busco logo cedo ater-me aos fatos ocorridos no mundo, embora já tenha se tornado uma chatice sem precedentes abrir o jornal na crepuscular atmosfera que se desponta e dar de cara com a morte soprando seu frio hálito em minha direção, enquanto me irrito por queimar os lábios com uma xícara de café quente, já que sequestrada minha atenção pelo noticiário, nem sequer percebi o vapor que exalava da caneca, um indicativo claro e evidente de que o café estava sobreaquecido. Outro detalhe que me irrita bastante, são as migalhas de pão que caem de modo sorteado pelo chão limpo; bem, estou acostumado a perder a paciência já logo de manhã. Não sou muito fã dos noticiários televisivos, confesso que deixam-me nauseado, ainda mais que sei de antemão do que ficarei à par ao pegar o controle e ligar a TV. Noticiários catastróficos e atrocidades que beiram os limites extrapolados pela própria ficção, acabam por tirar-me primeiramente o apetite, e posteriormente o entusiasmo. Modéstia à parte, me encaixo perfeitamente naquela parcela da população que jaz na estafa do dia a dia enquanto perece em meio ao tédio típico do caos urbano. Todavia, não é bem isso que me leva a desabafar por meio dessas palavras, até porque na maioria das vezes que pretendo fazê-lo, as mesmas revelam-se escassas e faltosas, pois não há como traduzir toda a indignação da alma tendo como artifício apenas uma vã ortografia. Sinto exalar o fétido cheiro da essência humana apodrecida em meio aos corruptíveis modos de vida; não vejo compaixão nos noticiários, o que vejo são migalhas de uma sociedade desestruturada, moedas baratas de troca ilegal numa espécie de “bazar emocional”, no entanto, emoções não podem ser contrabandeadas. Amar parece ter se tornado um costume velho demais para os modernos corações que batem no compasso dos atônitos flashes das câmeras, enquanto os olhares se dirigem repletos de soberba para um aglomerado de cifras, porém, não cabe a mim a tarefa de fazer julgamentos, e nem posso me atrever a tanto, já que estou tão sujeito quanto qualquer um a cair nas armadilhas da cobiça, em que as portas de entrada são nada mais nada menos que um par de olhos regidos pelo deslumbre.
A verdadeira riqueza de fato não se materializa, no entanto, se por força do acaso ou despreparo do coração, de algum modo duvidoso o faz, imediatamente se torna fútil, ao passo que a avareza, comburente da essência humana, prostra-se escancarada na mente de um pobre e dilacerado indivíduo cujo coração já se cansou de viver na esperança de dias melhores que nunca chegam. Esperar pode ser um ato de suicídio, um atentado à própria paz quando se passa a aguardar coisas de origem duvidosa, neste caso isolado, frutos temporãs da mente fértil e fantasiosa regida por outras leis que não essas do mundo real. A espera sem fundamentos assemelha-se a uma traiçoeira boca de lobo que em dias de tempestade pelas mais diversas avenidas espalhadas por este mundão de meu Deus, se despe de sua inofensiva aparência, e encoberto pela enxurrada, traga sem modos ou etiquetas um alguém desatento que desnorteado pelo forte aguaceiro que desaba sobre a cidade, assim, sem aviso prévio, entre o mistério da surpresa e a malandragem do acaso, o sopro de vida daquela pobre criatura é tragado bem como a fumaça tóxica de um cigarro o é por um inquieto fumante que não hesita em acender mais uma vez a “chama da morte” após ser acometido por uma crise ansiosa, esta mesma que o leva a quebrar o jejum de alguns dias sem alimentar o vício, escoltado pela vã ilusão de vencer de primeira a densa batalha da abstinência. Todo vício é uma forma de suprir algum vazio por meio de migalhas emocionais.
Moldado a caráter, o ego, meu companheiro de todas as horas, inflado igualmente um baiacu ao se sentir a presença da ameaça, força-me a despir-me de meus bons modos e deixar que o instinto fale por mim por meio de minhas ações, atitudes tomadas no calor do momento das quais não me orgulho nem um pouco após consumadas, porém, confesso que as armas que uso para me “defender”, são as mesmas com as quais em algum momento da vida fui abordado. A avareza é contagiosa, e bem sei que fui muito cedo contaminado por essa praga, e esta forma de contágio que de todas a mais popular, foi por mim exercida de modo diferente do que costuma-se ver por aí: fui avarento por amar; e este modo de ser fez de mim um ser ridículo. Busquei amor como se buscasse desesperadamente comida nas gôndolas abarrotadas dos mercados, e quando se há muitas possibilidades de escolha, a sensação de poder sobe à cabeça, e a personalidade, apesar de ser a mais afetada por este germe invisível (inimigo comum da alma corruptível), se apossa das emoções como uma espécie de radiador, que vai aos poucos as resfriando, deixando apenas um oco vazio, uma ausência de escrúpulos, de princípios, reproduzindo repetidamente o grave e perpétuo eco da solidão. Não digo de modo superficial, mas sim falo em matéria de felicidade, que muito falta ser ministrado o duro ofício de gerenciá-la nas ultrajantes e comuns lições da enigmática escola da vida. Em se tratando das finanças do coração, não raras vezes a contabilidade dos momentos felizes apresentam um extrato negativo, cuja conta cobrada da alma com juros e correção monetária desencadeia uma crise interna. Tudo se deve ao fato de que tempos difíceis assolam o planeta, e é bem comum de se ver pessoas incríveis aceitando menos do que merecem, tudo porque deixaram de se conhecer, de se amar, e se agarram às migalhas que lhes são oferecidas por darem maior ênfase ao outro do que a si mesmas. Esse coração, deserto de rostos amados que a amargura trazida com os anos fez esquecer, revela-se uma gruta deserta, parecida com as cavernas congeladas típicas de locais frios. Foi a primeira vez que desejei tornar-me cego perante o amor.
Castelos são grandes fortalezas, entretanto, não são impenetráveis, levando-se em conta que são compostos por um amontoado bem arranjado de pedras postas umas sobre as outras num encaixe perfeito e na medida ideal, e nada mais que isso, e bem sei que nunca fui testemunha ocular (ou de mexerico), de algum encaixe, amarra ou pilha de algo qualquer que seja que não se desmanchou ou se desfez pela ação da natureza física, e ainda menos por ação desgastante da natureza humana, esta última ácida e azeda como bem são o sulco dos limões. Não há pedra, não há concreto, ou sequer alguma rocha que resistiu ao artesão que esculpiu com mestria em todas as eras desde que tudo teve início: o tempo. O mesmo anfitrião que transforma lagartas rastejantes em seres alados encantadores e multicoloridos. Multifacetado por suas diversas artimanhas, ele percorre e mede preciso sem se desviar uma vírgula a duração inútil da vida, enquanto que as circunstâncias, filhas caçulas por ele regidas, vão guiando-nos trazendo a direção, filha bastarda e imprevisível ao qual muitos dão o nome de destino, já outros, mais descrentes e reservados intitulam como sendo acaso estas atribuições infelizes ou contemplativas que acometem um indivíduo. O tempo faz da ruína um ponto importante de visitação, torna flores perfumadas em frutos adocicados e suculentos. O tempo, em sua composição cuja fórmula não se descreve e não possui ingredientes, trata-se de um contínuo pré-existente que se propaga em apenas uma direção conhecida. Tudo que não é o agora é um mito, uma lenda, ou um desejo, habitam um período de tempo que não transcendem o ambiente mental das lembranças que podem ser positivas ou não, por tal razão, se mal gerenciados se tornam as grades que nos prendem em um cárcere cuja chave temos posse, entretanto, fazemos uso delas para trancar a fechadura ao invés de abri-la. O tempo nos mostra que a beleza do bolo está contida na cereja em seu topo, e não nas migalhas ao seu redor.
O coração dos ególatras fantasia pensamentos incompatíveis com a sua realidade o tempo inteiro, não passam de lobos solitários em busca de aventuras passageiras. Não sei como pude deixar-me levar pela aparência e pelo charme de um alguém que me envolveu com todas as suas armas de sedução, fazendo uso de meus pontos mais fracos, que por mera distração esqueci-me de ocultar dos olhares maliciosos, para que eventuais decepções não me atirassem numa fossa de tristeza e decepção assim como ocorreu. Fui perceber que não era amor, quando ver já se revelava um fator a mais que me feria, neste caso particular, fui cego por baixar a guarda. O amor nestas circunstâncias, na realidade não passa de uma faixada mal pintada e inacabada, no qual os olhos carcomidos e sôfregos de um alguém que enche seu papo com migalhas (no caso eu), inspirado naquele velho dito popular da galinha que se alimenta de grão em grão, foi incapaz de notar que levou ao pé da letra esta antiga falácia cujo efeito lhe surtiu adverso, uma vez que grãos não são migalhas, no entanto, migalhas podem sim por vezes assemelharem-se a grãos aos olhos daqueles cujos corações se esvaziaram de amor próprio. Vira e mexe a arrogância da quantidade pressupõe e soterra a sutileza da qualidade, e em termos mais técnicos, para ser aqui o mais cético possível, todavia sem perder a razão do termo exposto, devo ser um peão qualquer em meio a este campeonato tresloucado e desregrado de xadrez, onde muitas rainhas são sequestradas, torres derrubadas, cavalos abatidos, enfim, onde reinos são tomados e perdidos, haja vista que seus reis, uma vez encurralados são destronados e perdem enfim a sua coroa, todavia, os pões mais sábios e silenciosos, na surdina da estratégia e na sagacidade da ocasião, com astúcia e paciência podem vir se tornar peças fortes e decisivas colocando em evidência a aleatória possibilidade de vitória a uma partida que todos julgaram fracassada.
Cegueira, um mal que afeta a tantos e de maneiras diferentes, já que não necessariamente é preciso perder a visão para ser caracterizado como um cego. Bem me lembro de ter me fingido de cego em inúmeras ocasiões, às vezes é mais reconfortante ter “paz”, do que aceitar a dolorida e incômoda verdade advinda por intermédio da razão. Por outro ângulo, talvez de todos o mais obscuro, por incontáveis momentos permiti-me cegar e nem me dei conta, nem sequer percebi que me despi dos meus princípios e de minha visão quase perfeita, passando a ser um reles mendigo das emoções, interpretando um papel deveras infeliz. As migalhas dos olhos são as lágrimas, as migalhas da boca, são as palavras (mal)ditas num momento de exaltação, já as do coração, se caracterizam como sendo as batidas em vão por alguém que nem sequer se preocupa se as mesmas andam bem reguladas, em dia, ou simplesmente, que elas sequer existem… bem, migalhas sempre serão migalhas, no entanto cabe ressaltar que elas sempre se desprendem de algo maior, algo que esteva inteiro antes de algum evento posterior que o faz desfragmentar, o que me leva a concluir que as migalhas são no final das contas algo que se soltou por descuido de um lugar onde elas, agora minúsculas e insignificantes, como pecinhas de um quebra cabeças, compunham algo muito maior que a sua atual insignificância.
Que texto maravilhoso, Junio. Muito bem escrito , descrevendo o que está se passando em nossos dias e a divulgação esacerbada de notícias que só aumentam nosso desespero.
Parabéns! Você é um grande escritor.
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Obrigado ❤
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